segunda-feira, fevereiro 27, 2023

Escondam os livros, vigiem as redes!




A direita norte-americana que quer proteger a infância ao custo da liberdade de expressão lembra a esquerda brasileira que cobra o mesmo preço para "defender a democracia". 

Por Jerônimo Teixeira (foto)

Metade da prateleira de livros está coberta de cima a baixo com papel azul. Na outra metade, as três fileiras de livro estão expostas, com lombadas de várias cores convidando ao manuseio e à leitura. Mas ali perto há um rolo grande do mesmo papel azul, indicando que o trabalho não foi concluído, que o objetivo é esconder todos os livros. A prateleira é baixa, e a parede acima dela está coberta por um painel no qual se destacam gravuras coloridas acompanhadas de texto. A resolução da foto não permite discernir as letras pequenas, mas alguns títulos estão bem legíveis: “myth”, “legend”, “fantasy”, “fairy tale”. Mito, lenda, fantasia, conto de fadas: provavelmente, o professor está ensinando seus pequenos alunos a reconhecer esses gêneros narrativos. Não se veem alunos nem professores na foto, mas está claro que esta é uma sala de aula: no primeiro plano da foto, há uma carteira escolar vazia.

Em julho do ano passado, entrou em vigor uma lei sobre bibliotecas escolares, proibindo que estas ofereçam pornografia e material “inapropriado” para a faixa etária dos alunos. Abriu-se até a possibilidade legal de multas e penas de prisão para professores que transgridam esses parâmetros. Como os termos da lei ainda não foram esclarecidos, professores de algumas escolas do estado decidiram esconder os livros que mantinham em sala de aula, ou esvaziar as estantes.

E assim chegamos à imagem desoladora de uma sala de aula na qual os livros devem permanecer embalados em papel azul, inacessíveis a crianças que estão se iniciando na leitura. Uma representação nítida e sólida do estreitamento de horizontes produzido pela censura.

Censura? Ora, dirá alguém, desde quando proibir pornografia na escola é censura?

Bem, a pornografia é a parte negligenciável da lei, pois não carrega ambiguidades. Sequer precisamos de uma definição formal de pornografia para identificá-la. “Eu sei o que é quando eu vejo”, como bem disse Potter Stewart, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, em um julgamento de 1964 sobre um episódio de censura a Os Amantes, filme de Louis Malle (que, aliás, não é pornográfico). Mas estou certo de que os livros que estão sendo escondidos com papel azul não são pornográficos. Pornografia só entrou nessa história para suscitar pânico moral.

É na vaga categoria de “adequação etária” que a porca torce o rabo censório. O estado da Florida ainda está por esclarecer os critérios para decidir que livros seriam apropriados para cada idade (a reportagem do Washington Post informa que essa indefinição atrasou as aquisições de novos livros para bibliotecas escolares). O bom senso é o parâmetro mínimo, e acredito que os professores saberiam exercê-lo. Para citar duas obras que passariam pelo teste do juiz Potter Stewart mas nem por isso devem ser lidas por meninos e meninas: alguém imagina que uma escola pública recomendaria a leitura de História do Olho ou de História de O?

Desconfio que as novas leis da Flórida têm em mente critérios que vão além (ou ficam aquém?) do bom senso. Critérios ideológicos, ditados pela guerra cultural que hoje tudo permeia e a todos perverte.

Essas novas leis são patrocinadas pelo governador republicano Ron DeSantis, com apoio da maioria que seu partido conquistou no legislativo estadual. Cotado para ser o candidato à presidência em 2024, DeSantis cacifou-se junto à parcela reacionária do eleitorado – que ele deve disputar com Trump nas primárias do Partido Republicano – com a “Lei dos Direitos dos Pais sobre a Educação”, que proíbe professores de falarem sobre orientação sexual e identidade de gênero em sala de aula. O movimento LGBT batizou-a de “Lei Não Diga Gay”. Os conservadores rebatem alegando que a lei não é censória, pois se restringe à fase que vai do jardim de infância ao terceiro ano do fundamental (quando aparentemente as crianças ainda não sabem que existem gays). Ocorre que isso não é verdade: esses temas estão vetados também nos anos seguintes, se forem ensinados de forma “não apropriada à idade” dos alunos – a mesma formulação vaga e imprecisa da lei sobre bibliotecas infantis.

Crianças pequenas são curiosas. Questionam todos sobre tudo. Às vezes, fazem perguntas ingênuas que podem constranger adultos. Claro que há formas corretas e modos desastrados de responder à curiosidade infantil. Mas deixar a garotada sem qualquer resposta pode ser a pior alternativa. É por isso que não se admite simplesmente banir um tópico sexual – ou qualquer outro tópico – da sala de aula. Isso é, sim, censura. E a censura com frequência representa uma resposta simplista para problemas complicados.

As leis de DeSantis fariam sucesso com a direita brasileira que se encantou com as propostas censórias do movimento Escola Sem Partido. Nos Estados Unidos como no Brasil, esses cruzados investem contra os mesmos infiéis: a esquerda identitária e o progressismo woke. O reacionário é sempre um paranóico e, por isso, desenha tais inimigos com formas tentaculares e os pinta com as cores berrantes da conspiração. Mas não dizem que o paranoico às vezes tem razão?

Políticos como DeSantis são validados por uma esquerda que propõe relativizações extremas da biologia, traduzidas em expressões canhestras e redutoras como “pessoa com útero” ou “pessoa que menstrua”. A prescrição indiscriminada de bloqueadores de hormônios para adolescentes ou pré-adolescentes que se sentem desconfortáveis com o próprio corpo é realmente uma tendência preocupante; no entanto, médicos, cientistas e jornalistas sérios que acusam esse problema são estigmatizados como “transfóbicos”. Criando e reforçando novos tabus, interdições e proibições, a cultura da nova esquerda se mostra tão ou mais censória do que os republicanos que governam a Flórida.

Só que não se confronta esse estado de coisas banindo a discussão. Em uma coluna recente em Crusoé, André Marsiglia Santos criticou o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, por seu projeto de indicar um “czar da liberdade de expressão” (assim chamado pela imprensa britânica) para coibir a censura woke nas universidades. É má ideia, argumenta Marsiglia, indicar um cão de guarda para morder o calcanhar dos censores: “Sempre que alguém assume um papel de vigia, passa imediatamente a necessitar ser vigiado, sob pena de exercer poderes arbitrários”. Acrescento que a vigilância é particularmente venenosa no ambiente educacional. Um professor que se sente vigiado não exercerá bem sua função.

À direita e à esquerda, os censores hoje raramente se reconhecem como censores. No Brasil, não temos mais o Departamento de Censura da dona Solange: temos uma Procuradoria Nacional da Defesa da Democracia. Como Crusoé informou na semana passada, a sanha vigilante do governo petista desejava criar, por Medida Provisória, uma nova lei para limitar a circulação de fake news e de conteúdo antidemocrático nas redes sociais. O Congresso, que já discute um Projeto de Lei das Fake News, mandou o governo sossegar o facho. É bom que tenha sido assim, mas devo dizer que tampouco confio nos nossos parlamentares para legislar sobre o assunto.

A desinformação e a pregação golpista nas redes são, sim, problemas sérios, para os quais não encontro solução fácil no bolso do colete (ou da bermuda, pois escrevo em casa, em um dia de calor). Só não acredito que exista legislação capaz de incrementar a convicção na democracia e a tolerância entre os contrários de que tanto necessitamos.

Livros escondidos não despertam a imaginação das crianças. Censura não salva democracias.

Revista Crusoé