segunda-feira, fevereiro 27, 2023

O papel da oposição na democracia brasileira




O pressuposto de que defender as instituições democráticas implica apoiar o governo Lula, abster-se de criticar seus erros, não se sustenta

Por José Augusto Guilhon Albuquerque* (foto)

A vitória eleitoral de Lula no segundo turno provocou, em parte, um alívio depois de quase quatro anos de desgoverno do ex-presidente Bolsonaro e, sobretudo, diante de um final de mandato sem governo nenhum. O alívio também proveio de uma expectativa de cumprimento do compromisso, assumido pelo novo presidente, de formar um governo de frente ampla, com participação relevante das lideranças e do eleitorado de centro, sem cujo voto Lula teria sido derrotado.

No que diz respeito ao seu compromisso com uma ampla frente de defesa da democracia, não creio que seja injusto afirmar que ele tem deixado muito a desejar. E, se fosse injusto, motivado por discordâncias morais ou ideológicas, não teríamos o direito democrático de discordar?

Infelizmente, o alívio por termos evitado as ameaças golpistas do ex-presidente – graças, repito, ao voto do eleitorado de centro – provocou no jornalismo brasileiro e em parte da opinião pública uma quase unanimidade nacional. Mas a unanimidade não é apenas burra, como queria Nelson Rodrigues, ela é inimiga da democracia representativa.

Não basta se intitular democracia, nem apenas permitir a existência de partidos políticos, apenas tolerados, mas sem relevância e sem garantia de fato de disputar o poder. Para Robert Dahl, a principal referência na teoria democrática, além da igualdade do direito de participação política, a democracia pressupõe a garantia da liberdade de oposição.

O pressuposto de que defender as instituições democráticas implica apoiar o governo Lula, abster-se de criticar seus erros, aceitar indiscriminadamente sua falta de empenho em estabelecer uma política econômica coerente, ou sua insistência em manter-se permanentemente em campanha e perpetuar a polarização, não se sustenta. O pressuposto correto é de que defender a democracia implica apoiar as instituições democráticas e avaliar o desempenho de seus responsáveis e, em caso de discordância, valer-se do direito de oposição. A melhor maneira de contribuir positivamente para o bom desempenho de um governo do qual discordamos é fazer-lhe oposição, uma oposição programática, coerente em seus princípios e fiel ao Estado Democrático de Direito.

Minha primeira objeção ao atual presidente diz respeito a seu descaso quanto à principal prioridade de um governante, a de começar a governar com objetivos e projetos bem determinados, apoiado numa equipe governativa experiente, e com apoio de uma maioria congressual fiel e estável. Durante o mês de transição e no primeiro depois de empossado, Lula se distinguiu mais pelo que não fez do que por seus feitos em matéria de governo.

Empenhou-se em primeiro lugar em obter, a todo custo, apoio suficiente para livrar-se de qualquer âncora fiscal. A nova âncora, se levarmos em conta o princípio, por ele estabelecido, de que o equilíbrio fiscal é inimigo do povo, está fora de cogitações, uma vez que ficou postergada para o segundo semestre e seria atrelada à reforma tributária – a qual, por sua vez, poderia ser parcelada!

Como não é possível avaliar apenas o que não se fez, atenho-me, aqui, a iniciativas do governo Lula que considero arriscadas, para dizer o mínimo. Trata-se, por exemplo, das iniciativas de cerceamento da livre expressão de opiniões discordantes do governo com a criação de uma Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia em recente decreto da Advocacia-Geral da União (AGU), que, como sabemos, advoga supostamente em defesa da União, e não da “democracia”. Entre os objetivos citados pelo novo advogado-geral da União, em seu discurso de posse, o novo órgão deverá combater informações inverídicas “com o objetivo de prejudicar a adequada execução de políticas públicas”. Desde quando manifestar opinião contra a execução de políticas públicas que não sejam aceitas por um grupo de interesse pode ser considerado ilegal?

Outra iniciativa – esta diretamente tomada por Lula – talvez seja a mais arriscada. Trata-se do que podemos chamar de reconversão da polarização: com o enfraquecimento da base congressual do bolsonarismo, torna-se cada vez menos crível a iminência de um golpe capitaneado pelo ex-presidente. Isso parece tornar urgente, para o lulopetismo, encontrar outro polo a ser demonizado.

É o que se pode depreender dos ataques repetidos de Lula aos militares. Quaisquer que fossem as circunstâncias, seria fora de propósito o presidente da República tornar pública sua desconfiança de toda uma categoria de servidores do Estado. Dadas as circunstâncias, em que Bolsonaro e seu entourage militar ameaçaram constantemente desencadear um golpe de Estado com o apoio das Forças Armadas, trata-se de pura provocação.

Lula precisa entender rapidamente duas coisas: primeiro que, se ele deve ao eleitor de centro sua vitória eleitoral, ele deve à maioria legalista dos militares a recusa a cumprir os delírios ditatoriais do seu chefe supremo. Segundo, que seu principal dever é o de governar e, quanto mais adiar o cumprimento desse dever, mais ele será cobrado.

*Professor titular de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP)

O Estado de São Paulo