Queiramos ou não, abrir a porta à Eutanásia conduz-nos inevitavelmente à tentação de valorizar alguns, descartando outros.
Por Raquel Abecasis (foto)
Há coisas na vida que a vida desconhece. E a primeira delas é a origem da vida, o seu curso e o seu fim. É por isso que entendo que decidir sobre a nossa vida ou a vida dos outros é algo que nos deve estar vedado. Decidir sobre o que nos foi dado de mais precioso e que em grande parte desconhecemos é, no mínimo, brincar com o fogo.
Numa época em que discutimos a sustentabilidade e o destino do planeta. Em que nos preocupamos com direitos humanos e inclusão, defendendo que todos devemos ser respeitados tal como somos, porque todas as vidas podem e devem ser respeitadas, é anacrónico avançarmos para legislar sobre um suposto direito que não nos pertence: o direito de dar ou tirar a vida, o direito de decidir sobre a utilidade do tempo de vida que, insisto, não depende da nossa decisão, mas de fatores que não controlamos.
Portugal é um país pobre e desigual. Cada vez mais pobre e cada vez mais desigual. Todos os dias nos chegam indicadores de como estamos mais dependentes de ajudas externas e mais incapazes de dar resposta aos nossos problemas. Dos mais básicos (como o acesso à saúde), aos mais complexos (como criar condições para que este país se desenvolva economicamente). É num país assim, com quarenta por cento da população em situação de pobreza, que nos preparamos para abrir uma porta enganadora. Em que a antecipação do final da vida pode facilmente surgir como a solução mais fácil para os próprios ou para terceiros.
Bem sei que a lei da Eutanásia que se prepara para ser aprovada no Parlamento é uma lei supostamente cautelosa e restritiva. Mas também sei, e é fácil comprovar (basta estudar os exemplos onde esta lei está em vigor, como a Bélgica ou a Holanda), que o que começa com pequenos passos, rapidamente evolui para outros caminhos. Até porque haverá sempre outros grupos, que não serão abrangidos por esta primeira versão da lei, que exigirão os seus direitos mais tarde ou mais cedo.
A Eutanásia está para uma sociedade, como a utilização de armas atómicas está para o mundo: sabemos como começa, desconhecemos por completo como termina. Sabemos apenas que termina mal, muito mal, sem que haja uma previsão de quem se salva e como se salva.
Tenho fé e a certeza de que a vida é sagrada, seja em que estádio for do seu desenvolvimento. Mas acho que não é preciso ter fé para reconhecer que a vida não é um bem que esteja ao nosso dispor, por isso mesmo o direito à vida é um direito protegido constitucionalmente nos quatro cantos do mundo.
Esta semana, os defensores das grandes causas modernas da atualidade, em nome dos direitos humanos, vão aprovar uma lei que põe em causa o principal direito humano consagrado internacionalmente: o direito à vida. Entendo que na fúria de garantirem todos os direitos e todas as liberdades, os promotores desta lei estejam convencidos que estão a dar mais um passo em direção a uma sociedade de progresso. Tenho pena que a sua sede progressista os impeça de estudar a sério o que se está a passar nos países, raros, em que esta lei está em vigor. Se o fizessem perceberiam rapidamente que esta lei é inibidora da liberdade de muitos e contribui para uma sociedade em que a vida é cada vez mais avaliada pela sua utilidade aparente, deixando de fora todos os que não encaixam nesse cliché. Queiramos ou não, abrir a porta à Eutanásia conduz-nos inevitavelmente à tentação de valorizar alguns, descartando outros.
PS: A revolta dos papéis brancos que por estes dias se desenvolve na China prova como, por mais elaborados que sejam os sistemas políticos, não é possível controlar o homem e a sua liberdade. Na mesma altura em que Xi Jinping se autoconsagra líder eterno dos chineses, contra todas as expetativas e arriscando a própria vida, milhares de chineses fazem ouvir a sua revolta contra um sistema que os quer controlados e fechados em casa.
Não sei o que será o desfecho desta revolta. Talvez acabe com acontecimentos trágicos como os da praça Tiananmen em 1989. Mas o que os protestos do povo chinês nos dizem é que a liberdade humana é um valor pelo qual o homem está disponível a dar a vida. Do outro lado estão os que preferem tirar a vida para manter o poder.
Observador (PT)