quarta-feira, novembro 30, 2022

E orçamento secreto?




Por Carlos Andreazza (foto)

É preciso lembrar que o orçamento secreto não acabou. Não acabou com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro. Por que vai subitamente esquecido? Não ficou de repente menos grave. Não pode haver se tornado, de ontem para hoje, admissível. Criado por Bolsonaro, a própria assinatura no contrato que pactuou a sociedade entre o governo e o consórcio parlamentar que tinha em Ciro Nogueira, senador feito ministro, o embaixador, o orçamento secreto não acabou.

Está aí. Nunca tão influente. Adensando-se no ocaso do governo. Tornando-se incontornável para a ascensão do próximo.

O orçamento secreto. Um dos grandes vencedores da eleição, sob as barbas do Supremo Tribunal Federal (STF). O maior vencedor do primeiro turno, impondo-se aos cálculos políticos — sim, temos isso — de nossa Corte constitucional. Grande vitorioso e também grande eleitor. O orçamento secreto. Reelegeu-se, como sistema de controle de poder concentrado, e reelegeu o Parlamento. Reelegeu o esquema autoritário que reelegerá Arthur Lira presidente da Câmara.

O orçamento secreto. A distribuição de bilhões de dinheiros públicos nas mãos de pouquíssimos — Rodrigo Pacheco incluído. Distribuição de bilhões sob indicação obscura de patronos apadrinhados pelos senhores do Congresso — definição, ao mesmo tempo, de compra de votos no Parlamento e na ponta e de péssima qualidade no gasto público. Grana que chega ao município, elege desequilibrando as disputas e estabelece os feudos, não gera obra permanente, apenas empresas, inaugurações e fotos; e não raro se derrama na modalidade propina.

Está aí. Enraizado. O orçamento secreto. Agente oculto — mais ou menos oculto — que condicionará o regime, o grau de emagrecimento, da PEC da Transição. Vem dando as cartas. Dita o ritmo das negociações e dá estatura imperial a Lira. Será, tudo mais constante, instrumento de governabilidade para Lula. Ser-lhe-ia compulsoriamente, houvesse resistência. Será — o mundo real se impõe — ferramenta incorporada pelo novo governo, talvez para que se firme sociedade como aquela que comprou para Bolsonaro a PEC Kamikaze.

Será, se o Supremo não agir. Não há mais — não a esta altura — como desmontar o bicho, senão sob a declaração de sua óbvia inconstitucionalidade. A emenda do relator, frontispício para o exercício do orçamento secreto, é multiplamente inconstitucional. O STF tem de matar o mecanismo que hoje — muito mais que quaisquer fake news — depaupera, desestabiliza, a República.

Bolsonaro foi competitivo — e poderia ter vencido a eleição — não por efeito de gabinete do ódio, mas como consequência da derrama contratada pelo orçamento secreto. O STF tem de agir, ou nem o tribunal será capaz de fulminar o monstro. E que não nos venham os ministros com modulações. Com jeitinhos. A armadilha da acomodação — para que a coisa permaneça — está posta. Discurso ensaiado; para que se finjam mudanças, ajustes cosméticos, que não tocarão no fundamento antirrepublicano do vício.

A armadilha: concentrar o enfrentamento no caráter secreto do troço, atacar somente a falta de transparência, ignorando — deixando passar incólume — a gravidade imensamente maior de o dispositivo consistir em gestão para que os donos do Congresso distribuam exclusivamente aos seus, por ano, cerca de R$ 20 bilhões do Orçamento da União.

Aliás, em matéria de transparência, o Parlamento já deu — sinto muito — uma banana ao Supremo, atropelado, desmoralizado mesmo, quando colheu por resposta a uma determinação sua, por publicidade, a criação, pelo Congresso, de novas fachadas para dificultar a identificação dos padrinhos das emendas. Esculacho.

Até hoje o comando das casas parlamentares não entregou — desrespeitando ordem do STF — uma lista completa com os deputados e senadores que indicaram verbas via orçamento secreto. Ao contrário, criaram a figura do tal usuário externo, a formalização do laranja na destinação de dinheiros públicos. Esculacho.

O que espera o STF?

Qual o cálculo político — ai, ai — de agora no Supremo? Esperarão que se vote a Lei Orçamentária Anual, em que vai contido o orçamento secreto, para só então se mexer? Esperarão que a coisa ganhe mais um ano de formalização, mais uma camada de complexidade, para cuidar dessa perversão?

Sinceramente, o que produz hoje o Supremo senão palco para a onipresença de Alexandre de Moraes?

Que não se tenha dúvida: a maneira de o STF dar respostas consistentes à sociedade desconfiada — descrente da tessitura institucional — está em se esvaziar dos ímpetos monocráticos e enfrentar matérias constitucionais em sua forma plenária. A bola está quicando.

Há quanto o tribunal não dirige um julgamento de grande tema constitucional em seu colegiado? Está na hora. Que seja para se expressar impessoalmente contra o orçamento secreto. A República agradecerá, embora não seja favor.

O Globo