Os disparates que nos envergonharam serviram de estopim para que a sociedade civil se levantasse
Por João Gabriel de Lima* (foto)
A redemocratização brasileira, grande conquista de uma geração, era considerada um caso exemplar na ciência política. Os estudiosos se impressionavam com as instituições que se fortaleciam, as eleições regulares e as transições civilizadas. Usadas pela primeira vez em 1996, as urnas eletrônicas – seguras, rápidas, confiáveis – sempre foram vistas mundo afora como símbolo do sucesso.
Esse símbolo vem sendo atacado sistematicamente pelo presidente Jair Bolsonaro – que há duas semanas reuniu embaixadores para espalhar “fake news” sobre as urnas eletrônicas. A sociedade civil reagiu ao disparate que nos envergonhou no plano internacional. “O processo de apuração no Brasil tem servido de exemplo ao mundo com respeito aos resultados e transição republicana de governo”, diz a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”. O manifesto, elaborado na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, explodiu em adesões ao longo da semana.
Como observou o Estadão, a “carta” juntou “tucanos e petistas, juristas e economistas”, além de, entre outros, banqueiros, empresários, artistas e representantes de organizações não governamentais. Em resumo, uma amostra significativa da sociedade civil brasileira. “Foi uma aglutinação como há muito não se via no País”, diz Conrado Hübner Mendes, professor da Faculdade de Direito da USP. Ele é o entrevistado no minipodcast da semana.
O conceito de sociedade civil foi criado no século 18 por filósofos liberais escoceses, como Adam Smith, e expandido no século 20 por pensadores socialistas como o italiano Antonio Gramsci. Na definição original, ela incorpora toda forma de organização não estatal, da comunidade do trabalho – sindicatos e associações empresariais – à comunidade do conhecimento – as universidades e a imprensa.
A mobilização de todos esses setores é sinal de saúde democrática. “Uma esfera pública vibrante, com participação cidadã, força o poder a prestar contas”, diz Hübner Mendes. Ele é um dos criadores do termo “bolsonarismo”, empregado de forma pioneira em artigo publicado no Estadão em 2014.
Outrora considerada exemplo, a democracia brasileira vem perdendo pontos nos rankings internacionais. O semanário liberal The Economist, que coordena um desses rankings, publicou na semana passada um artigo extenso sobre a ameaça que o ataque às urnas representa para a nossa democracia. Os disparates que nos envergonharam, no entanto, trouxeram algo de positivo. Serviram de estopim para que a sociedade civil brasileira se levantasse para defender sua maior conquista.
*Escritor, professor da Faap e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa
O Estado de São Paulo