domingo, janeiro 30, 2022

‘Ir mais fundo que a raça'




Braço direito de Luther King nunca abandonou a luta antirracista e rejeitava políticas identitárias

Por Demétrio Magnoli (foto)

"Hoje, incontáveis ‘remédios’ —como a Teoria Crítica da Raça, a abordagem pós-marxista e pós-moderna da moda que analisa a sociedade como estruturas de poder institucional de grupos (...)— nos conduzem à direção errada: a separação até de crianças da escola elementar em categorias raciais explícitas, enfatizando diferenças ao invés de similaridades. A resposta é ir mais fundo que a raça, que a renda, que a identidade étnica ou de gênero. Ensinar a nós mesmos a compreender cada pessoa não como símbolo de um grupo, mas como um indivíduo singular, especial, no contexto de uma humanidade compartilhada."

Calminha, sacerdotes iracundos da IRUD, a Igreja do Racialismo dos Últimos Dias. Esperem um instante antes de caluniar o autor do texto acima, rotulando-o como supremacista. Contenham-se, ativistas da IRUD nas redes sociais. Não utilizem "brankkko", o termo infame que aprenderam com seus sacerdotes a empregar, para associá-lo à Ku Klux Klan (e, quando descobrirem a cor da sua pele, abstenham-se da rotina de qualificá-lo como "capataz da Casa-Grande"). Aguardem, integrantes do grupo Jornalistas Pela Censura Virtuosa: evitem escrever um manifesto identificando suas palavras à negação do Holocausto.

O autor principal do trecho entre aspas é Wyatt Tee Walker, braço direito de Martin Luther King nos movimentos pelos direitos civis, organizador da campanha anti-segregacionista de Birmingham (1963), uma das mais destacadas vozes no combate ao racismo durante seis décadas. Quando Walker morreu, em 2018, aos 88, Al Sharpton deu a notícia da seguinte forma: "Uma árvore imensa caiu". Sugiro que a IRUD e o Jornalistas pela Censura Virtuosa respeitem-no o suficiente para, ao menos, suportar a publicação de suas ideias.

As sentenças entre aspas estão no artigo "A Light Shines in Harlem", de 2015, que celebrava os 16 anos da Escola Sisulu do Harlem, instituição público-privada voltada para alunos de baixa renda. Nele, Walker declarava sua rejeição às políticas identitárias racialistas.

Walker nunca abandonou a luta antirracista. 1999, ano da fundação de sua escola, começou com o assassinato do imigrante da Guiné Amadou Diallo pela polícia de Nova York. Então, o septuagenário Walker perfilou-se ao lado de Sharpton em manifestações de protesto em Wall Street e na ponte do Brooklyn. Ele abominava a ideia de classificar jovens estudantes segundo o critério da raça exatamente porque sabia identificar o inimigo.

Um relatório de 1964 da comissão legislativa do Alabama que investigava militantes dos direitos civis descreveu Walker como "o verdadeiro líder do movimento negro". O líder intelectual era, claro, King: "Eu tenho um sonho de que um dia, no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas, como irmãs e irmãos". Na linha deles, opino que:

1. O racismo, chaga comparável ao ódio étnico, à intolerância religiosa e à xenofobia, não se combate pela inscrição da raça na lei, pela separação das pessoas segundo a cor da pele, pela introdução de cotas raciais;

2. Combate-se o racismo indo "mais fundo que a raça" —isto é, afirmando nossa "humanidade compartilhada". Por meio da aplicação das leis antirracistas, pela reforma da educação pública, pela reorganização radical da polícia, pela descriminalização das drogas leves, por legislações destinadas a reduzir a segregação espacial urbana.

King, Walker e Sharpton triunfaram falando em igualdade e união. Fizeram os EUA andar para a frente, conquistando as leis dos Direitos Civis e dos Direitos de Voto. Mais: empurraram o mundo adiante, enraizando o antirracismo nas consciências. A IRUD, ao contrário, segmenta e separa. Breca o mundo ao dividir os antirracistas, conduzir operações de policiamento cultural e regar, entre brancos e negros, as sementes do racismo popular.

Folha de São Paulo