Em um instigante artigo publicado no jornal O Globo de 9 de janeiro, intitulado “Miçangas e espelhos”, o economista paraense Mário Ramos Ribeiro tocou em um ponto crucial sobre os debates referentes ao futuro da Amazônia: o fato de tais discussões se darem majoritariamente fora da região e com reduzida participação dos seus habitantes, aí incluídas as lideranças políticas, empresariais e da cidadania em geral.
Segundo ele, os povos amazônicos assistem à distância as discussões sobre o futuro de sua economia e sequer têm a oportunidade de participar delas. Portanto, propõe, “não seria demais meditar sobre o subdesenvolvimento da Região Amazônica, a fim de evitar erros e prejuízos irreversíveis”.
Ribeiro não é um mero diletante, como muitos “defensores” da Amazônia que residem a milhares de quilômetros da região e conhecem a sua realidade apenas superficialmente, apesar de, quase invariavelmente, serem as referências mais solicitadas para se manifestar sobre o seu futuro, principalmente, pela mídia. Ex-presidente do Banco do Estado do Pará, ele foi secretário-executivo do Ministério da Integração Nacional (governo Temer) e é atualmente professor de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Assim sendo, suas avaliações são dignas de atenção:
A questão econômico-ambiental, central à Amazônia, hoje é esta: como integrar a economia da região a sistemas dinâmicos em inovação e tecnologia capazes de aumentar a produtividade total em harmonia com o meio ambiente? Ora, como se sabe, essa questão é exatamente a mesma que aflige qualquer outra economia nacional ou regional do planeta! Mas ela se torna dramática quando se verifica que a integração da Amazônia a tais sistemas econômicos está fora de cogitação das políticas públicas que lhe são mundialmente oferecidas.
Em verdade, nem mesmo a alternativa de participar desse debate é dada à população amazônica. Há um claro conflito entre o bem público regional (integração da economia amazônica às cadeias mundiais de inovação e tecnologia limpas) e o bem público mundial (uma economia descarbonizada). Se o bem público regional será sacrificado em benefício de um valor maior para toda a humanidade, a economia regional deveria ser compensada por ser impedida de escolher entre as alternativas de investimento e consumo descarbonizados a que o resto do mundo tem livre acesso. A compensação serviria para evitar que a subcidadania se agregasse ao já penoso subdesenvolvimento.
Em seguida, ele critica o modelo da “bioeconomia” que está sendo proposto como “compensação” aos amazônidas, como, supostamente, “a única forma de ser superada a troca onerosa (trade-off) entre a atividade econômica e o meio ambiente”:
(…) Essa alternativa inviabiliza a elevação da qualidade de vida na Amazônia. A “bioeconomia” confunde projeto de pesquisa com modelos de desenvolvimento; ela é apenas uma atividade de extrativismo rebatizada, com baixíssimo valor adicionado, cuja oferta de produtos raramente integra cadeias de valor substantivo. Não à toa, o extrativismo sempre foi apendicular ao desenvolvimento econômico e jamais o substituirá.
Se é essa “bioeconomia” que é a nova top model do ambientalismo romântico, então devem-se colocar com urgência as barbas de molho, pois não é esse o caminho de inserção da Amazônia no paradigma da destruição criativa. Lembre que foi por essa árdua trilha — em que as inovações permitiram a emergência de novos sistemas econômicos, com melhores padrões de bem-estar — que antes caminharam as regiões e os países desenvolvidos.
Para ele, o desenvolvimento da região não pode prescindir de “internalizar economicamente inovação e tecnologia”, Caso contrário, conclui, “sob a dominância da ‘bioeconomia’, resta à Amazônia receber uma grande oferta de miçangas e espelhos”.
As considerações de Ribeiro foram endossadas pelo filósofo, administrador e consultor de empresas amazonense Alfredo Lopes, cofundador do portal Brasil Amazônia Agora, em um artigo publicado dois dias depois. De acordo com Lopes: “Sua inquietação procede, pois as manifestações, em âmbito mundial sobre os destinos da Amazônia nunca foram tão prolixas e ao mesmo tempo tão estéreis. Multiplicam-se as soluções de algibeira, tiradas do colete da superficialidade e do achismo que levam a lugar algum.”
Todavia, ele critica a generalização feita por Ribeiro em relação à bioeconomia:
(…) É inaceitável tratar a economia da biodiversidade como extrativismo rebatizado. A comparação apressada denota um absoluto desconhecimento de muitas das ações já em andamento que postulam a bioeconomia como matriz econômica baseada em inovação tecnológica. Essa matriz resulta de uma convergência de saberes da nanobiotecnologia em consonância com tecnologia da informação e da comunicação… Bioeconomia não é extrativismo disfarçado, é mimese do bioma e da bioética, onde a dinâmica natural e florestal vira paradigmas a serem utilizados como ferramentas da inovação tecnológica, reunindo a nanobiotecnologia, tecnologia da informação e da comunicação.
E cita exemplos da própria região:
A Convergência Tecnológica de que precisamos é o nosso desafio e a melhor saída para uma obviedade surpreendente (vide https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_0557_0578.pdf). Aqui na Amazônia, essa discussão está apresentando rápidos avanços, com produtos e procedimentos altamente inovadores e grandes impactos econômicos e sociais. Veja a questão do açaí, a solução de infraestrutura do Grupo Bertolini. As chamadas TICs [tecnologias de informação e comunicações] e a revolução das nanotecnologias possibilitam grandes sinergias, produzindo resultados espetaculares e inimagináveis há bem pouco tempo. O laboratório nacional de nanotecnologia em São Carlos (SP), da Embrapa Instrumentação, que era uma fantasia faz poucos anos, hoje atende as empresas de fabricação de preservativos, pneus e produtos hospitalares. Elas encomendam clones da floresta amazônica a partir da seringueira, a Hevea brasiliensis, coletadas no Rio Juruá (Amazonas), onde brota uma espécie considerada perfeita em sua configuração biomolecular. Isso não é extrativismo e sim um acontecimento científico e tecnológico de manejo florestal sustentável que qualquer país civilizado que investe e respeita o conhecimento gostaria de chamar de seu. O economista Denis Minev, atualmente CEO do Grupo Bemol, acredita que em breve o Brasil vai entender, degustar e abraçar a Amazônia, suas oportunidades e potencialidades. Quem sabe, este assunto possa substituir o debate estéril da política menor nas próximas eleições e ganhe o fôlego e a abordagem de que a Amazônia precisa para emprestar sua grandeza à construção do país.
Desafortunadamente, tais iniciativas isoladas ainda estão longe de serem integradas em um amplo processo inserido em políticas públicas voltadas para o pleno desenvolvimento da região. Em um artigo anterior, de dezembro de 2019 (“Amazônia, a pátria de novos empregos”), o próprio Lopes já havia sinalizado um requisito fundamental para isso: “(…) É preciso envolver num grande projeto o setor privado, a universidade e o poder público. É inaceitável que o Brasil tenha menos de 1% de seus cientistas atuando na Amazônia, onde o mundo civilizado está de olho desde a descoberta da América. Os países centrais já teriam posto milhares de cientistas e laboratórios para planejar e implantar um futuro mais saudável e mais próspero.”
Em essência, apesar de divergências pontuais, tanto Ribeiro como Lopes vocalizam uma clara percepção de que o pleno desenvolvimento da Amazônia não poderá quedar vinculado aos espelhos e miçangas provenientes do exterior, na forma de instrumentos financeiros condicionados a conceitos simplistas e equivocados de sustentabilidade, como pensam muitos. Em outras palavras, terá que ser decidido e implementado pelos brasileiros e, principalmente, pelos amazônidas.
MSIa