sábado, janeiro 29, 2022

A política do atraso




Bolsonaro mostrou-se aquém do poder e com grandes dificuldades para compreender o que a função presidencial dele exige

Por José de Souza Martins* (foto)

No cenário das eleições deste ano, há vários componentes que confirmam mudanças na tradição brasileira de confrontos eleitorais. Resultam das contradições acumuladas nas estruturas de referência das mentalidades, das ações, das atitudes dos políticos e do povo. É o lado invisível e só acessível à ciência do que é próprio das realidades sociais, que são sempre realidades em transe e em transição. A sociedade se move todo o tempo, não necessariamente na direção dos que querem movê-la nem dos que acham que a movem e manipulam.

A circunstância da política no Brasil foi desconstruída pela ação conjunta de Bolsonaro, dos bolsonaristas e do vírus da covid-19. O verdadeiro político, como o verdadeiro empresário, é aquele capaz de criar e de inovar em face do imprevisto. Não é isso que estamos vendo.

O componente mais significativo dessas mudanças é o de que, no governo do que é aqui definido como direita, as forças sociais espontâneas peneiram os atos do governante e de seus ministros e coadjuvantes. Reduzem cada vez mais a malha do peneiramento e nela retêm uma categoria política residual, a do que o governante propriamente é.

O principal aspecto da nova realidade, de que tem sido ele protagonista, é que os recursos do escamoteamento de suas limitações serão agora menos eficazes. Seu teatro do autoritarismo militarizante é frágil, seus coadjuvantes são amadores e demasiadamente cúmplices, o que aumenta o poder revelador das contradições políticas de que ele é produto.

Os mesmos processos fabricam e refabricam outros protagonistas do processo político e eleitoral. As contradições do PT e de Lula fabricaram Bolsonaro e os bolsonaristas, cujas contradições refabricaram Lula, o PT e as esquerdas que podem nos restituir a democracia e repropor e fortalecer a pluralidade de que a democracia carece.

O processo político é dialético. E nos revelou o fundamento da direita brasileira mal esboçada. Aqui, é ela o atraso econômico, social, religioso e cultural e o são as expressões doentias desse atraso. Nesse sentido, não tem ela envergadura nem condições políticas para propor e protagonizar um projeto nacional de crescimento econômico sem desenvolvimento social que tem sido o objetivo do governo Bolsonaro e do bolsonarismo.

Em 2018, não havia dúvida de que Bolsonaro era o candidato da direita e arrastava atrás de si os dispersos e dissimulados direitistas que poderiam ser beneficiados pela clara reorientação do eleitorado para fora do movimento político pendular. Mas que direita era aquela?

O enigma, portanto, na eleição próxima, é o da natureza desse direitismo reconfigurado pelo poder, especialmente nas grandes revelações políticas do descompasso entre o governante e o poder, um poder maior do que quem acha que governa. Bolsonaro mostrou-se aquém do poder e portanto com grandes dificuldades para compreender o que a função presidencial dele exige. Esse desencontro expressou-se nas decisões erradas que vitimaram diretamente a população, na questão da pandemia e na questão do emprego e do trabalho.

Em nossa história política, o atraso tem sido dissimulado ou diluído nas ideologias híbridas e nas ações híbridas. A reunião do presidente e de seus ministros, no dia 22 de abril de 2020, cujo vídeo o STF mandou exibir, revelou o quanto o atraso preside as orientações do governo nos seus vários âmbitos. Decantou o hibridismo que lhe acobertava as insuficiências e expôs que a direita é nele um programa para assegurar o atraso lucrativo e imobilista. Direita, aqui, é isso, o poder do atraso.

Em vários países, estuda-se hoje a ignorância, dado o peso que tem na realidade social, cultural e, aqui, também política. Mas não se trata de ignorância no estrito senso. Trata-se da ignorância que o atraso, como limite de discernimento de quem governa, revela e ressalta. O desdém pela ciência é expressão de atraso. O menosprezo pela vida, no pressuposto de que morrer é inevitável, é uma concepção retrógrada. O desapreço pela vacina, pelo distanciamento, pelas máscaras na prevenção contra o vírus, é atraso. O atraso da presunção do poder pessoal do governante nele revela a dificuldade para compreender as instituições e suas funções.

As irracionalidades do inesperado, como a pandemia, as enchentes, os escorregamentos, os desastres sociais e naturais, expuseram as enormes insuficiências de personalidades formadas na cultura do atraso. No capitalismo, o atraso é irracional e anticapitalista. Assegura formas retrógradas de riqueza mas não assegura a cumplicidade da vítima nem a durabilidade do absurdo. O atraso, aqui transformado em programa político e em protagonismo ideológico, afunda o capitalismo e suas empresas.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp).

Valor Econômico