Publicado em 31 de outubro de 2021 por Tribuna da Internet
Ruy Castro
Folha
Há dias, o garoto Luiz Felipe Salinas Almeida, 20 anos, tocava seu violoncelo numa rua de Santos quando ouviu algo se chocando contra a madeira do instrumento. Sem parar de tocar, examinou-o e viu a baba escorrendo. Alguém o alvejara com um ovo. Diante da gratuita brutalidade, Luiz Felipe teve vontade de chorar. Mas se segurou e continuou tocando.
Os transeuntes que o ouviam olharam em torno tentando identificar quem fizera aquilo. Não conseguiram — o ovo poderia ter vindo de alguma janela. Outros perceberam a agressão e aproximaram-se, solidários. Isso só ampliou a humilhação de Luiz Felipe. Como ele disse depois, não queria ser objeto de piedade.
VIVE DA MÚSICA – Não era a primeira agressão que sofria. Luiz Felipe toca nas ruas para viver e para pagar a pensão alimentícia de seu filho Valentim, de um ano. Seu palco são as cidades do interior de São Paulo e Minas Gerais. Em algumas, o comércio ao alcance de sua música já chamou a polícia para tirá-lo dali e apreender seu instrumento.
Luiz Felipe pode não ser um virtuose como o catalão Pablo Casals e o russo Mstislav Rostropovich, duas lendas do violoncelo, ou o sino-americano Yo-Yo Ma, um prodígio contemporâneo. Mas o violoncelo não é um instrumento agressivo.
Seu território é o clássico e, sempre que emprestado à música popular, deu a esta uma sobriedade e classe que ela poderia ter incorporado de vez — vide o americano Kronos Quartet tocando Thelonious Monk e o nosso trio Paula e Jaques Morelenbaum e Ryuichi Sakamoto tocando Jobim.
ARCO E CORDAS – Numa época de música em decibéis intoleráveis para o ouvido humano, é impossível a um menino armado com um arco e quatro cordas, como Luiz Felipe, ferir a sensibilidade de alguém.
Resta ver até quando nossa sensibilidade resistirá à selvageria oficial, emanada dos atuais ocupantes do poder. Nunca o Brasil foi reduzido a tal rudeza e sordidez.
A pessoa que atirou o ovo personifica esse Brasil.