Jair Bolsonaro faz um governo absurdamente ruim, mesmo levando em conta as aspirações de quem comunga do seu extremismo de direita. Mas e na economia, o que é de fato "custo Bolsonaro"?
Por Fernando Dantas
Nos seus mil dias de governo, Jair Bolsonaro não tem praticamente nada a exibir, mesmo a seus eleitores fiéis, que compartilham sua agenda de extrema direita.
Com uma “antiestratégia” política de rara obtusidade, ele se recusou a formar uma base de apoio parlamentar inicialmente e depois buscou o Centrão, quando essa opção se tornara mais cara. Não à toa, Bolsonaro é um presidente recordista em derrotas no Congresso, incapaz de entregar concretamente a maioria das suas promessas de campanha.
O presidente é um sério candidato ao governante mais despreparado que jamais assumiu o comando de uma grande nação. Ele não só não tem uma visão de país, como não faz a menor questão de tê-la. No Planalto, suas preocupações continuaram tão paroquiais como nas décadas em que foi parlamentar do baixo clero.
Sua única centelha ideológica é um ódio visceral a tudo o que identifica como de esquerda, numa acepção tosca e primária do significado do termo. É isso que o levou à “antipolíticas” públicas de destruição proposital em áreas como educação, meio-ambiente, direitos humanos e relações raciais, que em seu delírio estavam tomadas por “comunistas”.
Quando a pandemia chegou, Bolsonaro vestiu a camisa do negacionismo da ciência – que já se associara em outras partes do mundo à extrema-direita no debate sobre o aquecimento global – e teve uma das atuações mais grotescas entre todos os chefes de Estado do mundo.
Uma questão pertinente é avaliar quão grande e duradouro será o estrago deixado por Bolsonaro ao fim do seu primeiro mandato, independentemente de se reeleger – o que hoje parece difícil – ou não.
Em primeiro lugar, há o problema das instituições democráticas. Aqui, existe um debate entre cientistas políticos e pensadores em geral. Uma maioria considera que já houve um estrago grande, que deixará cicatrizes, como a intromissão dos militares na política e a irrupção de uma agenda política corporativista e radical por parte de agentes do Estado armados (e dispostos a se valer da violência), como a Polícia Militar.
Mas há uma minoria de analistas que defende a tese de que as instituições democráticas brasileiras “estão funcionando” para controlar os impulsos antidemocráticos de Bolsonaro. Um dos argumentos dessa corrente é a debilidade política do presidente após 1000 dias de desgoverno, com baixa popularidade e perda de apoio entre parte considerável das elites econômica, política e jurídica.
Uma discussão à parte é o legado econômico que Bolsonaro deixará ao fim deste mandato.
Aqui também não faltam razões para desapontamento. O ministro da Economia, Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do presidente, começou em 2019 como uma espécie de herói do liberalismo e como a face menos tosca do governo.
No primeiro ano, foi aprovada uma substancial reforma da Previdência, que se beneficiou de um amadurecimento político e social após longos anos de discussão, culminando com a reforma que quase se realizou no governo Temer.
Ainda assim, é injusto tirar todos os méritos de Guedes, que apostou – contra muitas vozes na época – por partir do zero com um novo projeto, diferente daquele de Temer, e foi bastante bem sucedido.
Depois da Previdência, no entanto, as coisas desandaram. Guedes perdeu-se com o envio de diversas reformas simultaneamente ao Congresso, sem eleger prioridades, e o caos político promovido incessantemente por Bolsonaro foi a gota d’água para que nada andasse.
É aí veio a pandemia, que levou a política econômica oficialmente liberal e ortodoxa a bancar um déficit primário de quase 10% do PIB em 2020, por conta das ações de saúde e dos programas de ajuda a pessoas e empresas, com destaque para o auxílio emergencial.
Gastar mais por causa da Covid foi uma opção correta segundo o consenso mundial, mas inevitavelmente desviou o foco da política econômica.
E, de fato, a partir da pandemia, Guedes perdeu completamente o fio da meada da sua agenda liberal. Não que nada tenha andado, como mostra a conquista da autonomia formal do Banco Central (BC), mas os eventuais avanços foram localizados e pouco tiveram a ver com a ação do Ministério.
Na verdade, a imagem de Guedes se deteriorou, em episódios como a demissão do liberal Roberto Castello Branco da Petrobrás por Bolsonaro, e também em função de uma série de declarações desastradas e elitistas do ministro e da sensação geral de que ele sacrifica seus princípios e ideias para se manter no cargo.
Quem vê hoje os números brasileiros de inflação de 10%, desemprego a 14% e um PIB projetado para desacelerar para 1,5% em 2022 tende a considerar que o desastre bolsonarista na economia é pelo menos tão forte quanto na política.
Nesse ponto, porém, é preciso fazer uma ressalva. A devastação econômica da Covid é um fenômeno global, com gradações ligadas às circunstâncias e vulnerabilidades de cada país.
Um nível de mortes calamitoso com a Covid, a economia em frangalhos e a queda estrondosa da popularidade do governante é um “combo” que afeta tanto o presidente extremista de direita no Brasil quanto o presidente populista de esquerda da Argentina, Alberto Fernández.
Na verdade, o(a) próximo presidente do Brasil, seja Bolsonaro ou outro(a), terá que lidar com uma agenda econômica mais ligada a lacunas históricas do Brasil – como completar o ajuste fiscal, reformar o Estado, retomar o investimento público e avançar em reformas pró-eficiência – do que com estragos provocados por Bolsonaro.
Guedes fez muito pouco, mas isso vale tanto para o lado bom como para o ruim. O que mostra que não fazer a coisa errada – evitando repetir a “nova matriz” de Lula II e Dilma – num país torto como o Brasil já é algum lucro.
O Estado de São Paulo