Por Mario Sabino (foto)
Os mil dias do governo de Jair Bolsonaro foram comemorados com inaugurações de obras pífias e entrevistas a veículos chapa-branca, nas quais o vazio mental do presidente da República não conseguiu ser preenchido por jornalistas que estavam ali dispostos a colaborar para que o inquilino do Planalto tentasse passar a imagem de estadista. Numa das entrevistas, inclusive, diante do deserto de ideias que se estendia a perder de vista, Jair Bolsonaro foi perguntado sobre armas atômicas, uma das questões nacionais mais urgentes, como se sabe. Se bem entendi, queriam saber se, no caso de o Brasil voltar a investir em usinas nucleares, isso poderia levar à fabricação de bombas atômicas. O presidente da República garantiu que não. Fiquei aliviado.
Do governo de Jair Bolsonaro, consigo extrair duas coisas boas até agora, como já disse em outro artigo: a modernização das leis trabalhistas, que será solapada pelos sindicalistas de toga e sem toga, e a sanção do novo Marco Legal do Saneamento, que abre caminho para que empresas privadas possam universalizar a rede de água potável e de tratamento de esgotos até 2033. Para não ser injusto, lembro agora da Reforma da Previdência. Adiou bastante a explosão da bomba-relógio fiscal. Três aspectos bons, portanto. Se Jair Bolsonaro não tivesse feito nada de certo além disso, já teria sido medíocre o suficiente para entrar no panteão das glórias nacionais. O problema é que as coisas erradas suplantaram em muito as corretas.
Eu classificaria os mil dias de governo como os mil dias de Sodoma e Gomorra, nos quais a racionalidade e a estabilidade foram seguidamente violadas, em uma orgia que, iniciada pelo Palácio do Planalto, tomou conta da Praça dos Três Poderes. No livro Me Odeie pelos Motivos Certos, que reúne artigos que escrevi para a Crusoé e para O Antagonista e acaba de ser lançado em versão impressa pela Topbooks, fiz um balanço sucinto do atual governo:
“Uma vez no poder, Jair Bolsonaro açulou as suas hostes contra os poderes constituídos, dando pretexto a que manifestações legítimas de liberdade de expressão fossem misturadas às ilegítimas. Ele também flertou com o autogolpe, tentando cooptar militares. Como escrevi em outro artigo, ‘depois de explodir todas as pontes de tráfego decente com o Congresso — com a ajuda estimável do gabinete do ódio especializado em fake news, equivalente aos blogs sujos do petismo — e inviabilizar um diálogo político minimamente saudável com deputados e senadores, o presidente sem partido estabeleceu uma pinguela com o Centrão, para contornas as dificuldades que ele mesmo criou e, no limite, um processo de impeachment. Sob os aplausos dos seus cúmplices no parlamento (petistas incluídos), Bolsonaro chancelou a destruição da Lava Jato e atingiu o máximo da infâmia ao forçar a demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça, a fim de mudar o diretor-geral da Polícia Federal e, assim, tentar evitar que investigações conduzidas no Rio de Janeiro alcançassem os seus filhos ou até ele próprio. A demissão de Moro teve ainda outro motivo: o medo de que o ex-ministro da Justiça lhe fizesse sombra em 2022. Bolsonaro, ao contrário do que dizia na campanha, quer ser reeleito. Com a cabeça na reeleição e refém do Centrão, o presidente estoura os cofres públicos. Em meio à urgência sanitária mundial, ele ainda demonstra o mais sociopático desprezo pela perda de milhares de vidas dos seus concidadãos’. Como não poderia deixar de ser, declarou guerra aberta à imprensa independente, que aponta os desvios no seu governo e critica o seu comportamento abjeto e característico de um sociopata no enfrentamento a pandemia. Para tanto, usa da intimidação judicial. Enquanto bate no jornalismo independente, ele beneficia empresários amigos no setor de comunicação, a fim de obter noticiário favorável, quando não francamente propagandístico.
Desesperado com as consequências políticas e criminais do relatório da CPI da Covid, além da possibilidade cada vez maior de perder a eleição em 2022, passou a atacar com virulência o STF e o TSE, com xingamentos a ministros do Supremo, e a divulgar notícias falsas sobre a falta de segurança das urnas eletrônicas. O seu alvo principal é o ministro Luís Roberto Barroso, que ordenou a abertura da CPI no Senado, em obediência à Constituição e ao regimento da casa, e preside neste momento o TSE. O ministro é forte opositor da adoção do voto impresso, que virou cavalo de batalha de Bolsonaro, apesar de ter sido fonte de inúmeras fraudes em eleições em todos os níveis, o contrário do que o presidente apregoa. Qualquer discussão racional sobre o tema foi anulada pelo destempero do presidente e as suas ameaças de intervenção militar. Em reação inédita na história da República, o STF e o TSE abriram investigações sobre a conduta de Jair Bolsonaro, atribuindo-lhe a suposta prática de diversos crimes. Na economia, o seu discurso de campanha, em prol de uma agenda liberal, deu lugar ao fisiologismo, à perpetuação do inchaço da máquina estatal, ao assistencialismo eleitoreiro e à intervenção federal em estatais que eram para ser privatizadas. A política populista de juros baixos resultou em aumento exponencial do preço do dólar e, consequentemente, em aumento de inflação. Hoje é possível dizer que Jair Bolsonaro e Lula se equivalem como ameaças à democracia, cada um a seu modo. E as recidivas de ambos podem ser ainda piores para o país.”
O balanço foi feito antes de Jair Bolsonaro ser relativamente domesticado pelo ex-presidente da República Michel Temer, que visou a manter tudo isso aí, viu, e o ministro Alexandre de Moraes, a cujos ímpetos autoritários o presidente da República deu vazão, com seus ataques desmiolados ao STF. Mas se algo mudou, foi para não mudar.
Quando foi eleito, Jair Bolsonaro disse que governaria pelo exemplo. Faltou dizer que era pelo péssimo exemplo.
O Antagonista