quinta-feira, setembro 30, 2021

Bolsonaro mil dias (perdidos)

 




O Bolsonaro que está na Presidência só é o mesmo da campanha (e de antes) em truculência e patrimonialismo. 

Por Paulo Cruz 

“[…] a constituição inteira da realidade do homem e da sociedade é apagada pelo sonho, pela fantasia de uma segunda realidade, onde coisas como ‘necessidades históricas’ podem ser encontradas. Tal segunda realidade, é claro, não existe. Ao contrário, é sempre uma questão de o homem envolvido ser um tipo degenerado. Quem quer que seja um tipo degenerado tem necessidades históricas.” (Eric Voegelin, Hitler e os alemães)

Num grupo privado e aposentado de Facebook, que reunia muitas figuras conhecidas da natimorta nova direita brasileira – dentre estes, muitos ex-amigos inacreditavelmente cooptados pelo governo de turno –, leio: “O problema é que não consigo mais me misturar com minions, e justamente o que SEMPRE FIZ, e me cobram por não ter feito, é o que tomo cuidado para não fazer agora: me declarar bolsonarista roxo”. Ou seja, mesmo numa sentença meio confusa, dá para entender que um sujeito que, atualmente, é um dos mais empedernidos bolsonaristas, em meados de 2017 esforçava-se para não se “misturar com minions”, e o receio de que os movimentos conservador e liberal que modestamente surgiam fossem confundidos com o movimento bolsonarista, era real muito antes das eleições de 2018. O que terá acontecido para que esse e mais um número considerável de pessoas que eram muito críticos, como eu, àquilo que se configuraria como bolsonarismo, que tinham sido atacadas por hostes militantes olavistas e bolsonaristas, de repente, diante do que se apresentava, bandeassem para um governismo tácito ou declarado? Deus é quem sabe.

O fato é que, após mil dias de “governo” Bolsonaro e de praticamente todas as promessas de campanha jogadas na lata do lixo, só apoiam ainda tamanha excrescência aqueles que lucram com ela ou os que estão cegos por ela, vivendo na segunda realidade dos grupos de WhatsApp. A lista de descaminhos é grande. Eis alguns itens:

Retirou o Coaf do Ministério da Justiça para proteger os filhos; sancionou o juiz de garantias (emenda de Marcelo Freixo); sancionou a limitação de delação premiada; sancionou a Lei de Abuso de Autoridade; nomeou Augusto Aras, um reconhecido petista, para a PGR; nomeou André Mendonça, ex-assessor do Toffoli, para a AGU e, depois, para o STF; “derrubou” Sergio Moro por ele discordar de sua interferência na Polícia Federal; ajudou a desarticular a CPI da Lava Toga; entregou o governo ao Centrão – não para dialogar e buscar a governabilidade, mas para se manter no poder e blindar os filhos; tornou-se recordista no gasto com emendas parlamentares; não privatizou a EBC; criou duas estatais em vez de privatizar; indicou Kassio Nunes Marques, crítico da Lava Jato, para o STF; excluiu a nata do funcionalismo da reforma administrativa que enviou ao Congresso. Há mais, muito mais; mas isso basta.

Não há qualquer ilusão: o Bolsonaro que está na Presidência só é o mesmo da campanha (e de antes) em truculência e patrimonialismo. E engana-se quem diz que ele não governa porque o Sistema não deixa. Primeiro porque ele é do Sistema, o conhece há mais de 30 anos, sabe como as coisas funcionam por lá e sabia o que era necessário fazer para fortalecer sua bancada de apoio e lutar pelas reformas. Segundo que, no início de seu governo, tinha todo o apoio de que precisava para tais negociações. Do ponto de vista daquilo a que seu governo se propunha, conseguiu algumas poucas (mas importantes) conquistas, como a reforma da Previdência (mantendo o privilégio de militares) e a Lei da Liberdade Econômica, antes de enveredar para um sonho de democracia direta, na qual o “povo” ficaria 24 horas por dia nas ruas, pressionando o Congresso para que acatasse todas as pautas do governo.

E começaram as pífias manifestações governistas (ainda em 2019) e a formação de grupos militantes malucos, que investiram contra as instituições de forma tão absurda que a única coisa que conseguiram foi iniciar uma perseguição implacável – sobretudo do STF – contra seus líderes, resultando em prisões e arbitrariedades tão absolutamente condenáveis quanto suas atitudes frontalmente antidemocráticas. Dizer, por exemplo, que nas manifestações bolsonaristas não pediam, insistentemente, o fechamento do Congresso, a instauração do AI-5 e a destituição dos ministros do STF; que os cartazes de “Eu autorizo” – pedindo por “intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio” – não eram tacitamente aceitos e louvados pelo presidente, que se enxerga como a representação da vontade popular, é tentar tapar o sol com a peneira. Bolsonaro deu mostras bastante claras de que via nessa tentativa de insurreição a oportunidade de governar sem ter de “se vender”, sem ter de negociar, sem ceder ao toma-lá-dá-cá. Só não contava com a fragilidade de seus esquemas familiares de peculato. Pediu truco, levou um seis.

Então veio a pandemia. E aqui poupar-te-ei, caro leitor, pois estamos diante do curso dos acontecimentos, e o que se configura não são somente crimes, mas a mais pura crueldade, o sadismo, a mortandade deliberada. Basta dizer que nosso distinto presidente investiu contra a população desde o primeiro dia das medidas de contenção de uma doença totalmente desconhecida e sobre cujos efeitos ainda não tínhamos informações suficientes. Decidiu negar, peremptoriamente, a mais importante virtude conservadora: a prudência. Com isso, menosprezou a letalidade do vírus, desprezou as mortes e o receio da população, instou que voltássemos “à normalidade” e não só incentivou como comandou uma campanha intensa e irresponsável pelo uso da hidroxicloroquina – medicamento já comprovadamente ineficaz contra a doença – e outras drogas do famigerado “kit Covid”. Também, diante dos gravíssimos problemas em Manaus – com as pessoas morrendo por falta de respiradores –, imitou pessoas com falta de ar. E o caso recente, em investigação, que envolve a empresa de assistência médica Prevent Senior, se comprovado, configurará um tipo de crime cuja hediondez deverá ser julgada por tribunais internacionais.

Tudo isso em meio a crises fabricadas pelo próprio presidente, que, recentemente, promoveu uma série de motociatas, um desfile de tanques vergonhoso para provocar os demais poderes da República, e, no último 7 de setembro, resolveu apostar todas as fichas num possível golpe de Estado (provocando a tal sinalização do povo), inclusive ameaçando nominalmente o ministro Alexandre de Moraes, para, logo em seguida, voltar atrás com uma carta redigida pelo ex-presidente Michel Temer.

O que temos, então, a comemorar, nesses mil dias de governo Bolsonaro? Tu respondes, atento leitor.

De minha parte, quero somente evocar, novamente, uma obra que deve ser lida por todos os que desejam verdadeiramente compreender o momento atual, no qual uma estupidez pretensiosamente perigosa toma conta do alto comando do país: Hitler e os alemães, de Eric Voegelin. Não, não se trata de apelar à Lei de Godwin, mas de perceber o espírito que domina determinadas mentes e épocas; nesse sentido, a obra não é só uma análise perfeita, mas também tem um caráter profético. Voegelin recorre ao romancista Robert Musil para falar do que chama de estupidez criminosa, cujos efeitos são catastróficos. Diz ele:

“Esse é o ponto em que a estupidez – por prejudicar não apenas o estúpido, mas também outros seres humanos (nesse caso, milhões de seres humanos, que devido a ela foram levados à miséria e foram mortos) – tem de ser chamada, nessa circunstância social específica, estupidez criminosa. Ou seja, a estupidez não é criminosa em si, mas pode tornar-se criminosa pela circunstância social. Então, quem quer que, como estúpido, num lugar da sociedade em que não poderia estar, dá ordens ou tenta instruir outros, é um estúpido criminoso; e por causa disso ele se torna um criminoso, mesmo que ele próprio não entenda assim de maneira nenhuma.”

Eis o que temos diante de nossos olhos. Não concordas, estupefato leitor? Pois bem, o tempo dirá. Por ora, só nos resta sentar e chorar pelos mil dias perdidos.

Gazeta do Povo (PR)