Projeto dava possibilidade de prorrogar por mais 30 anos os contratos em vigor
Mil dias de governo de um presidente como Jair Bolsonaro parecem uma eternidade. Em contraste, foi rápida a queda do véu eleitoral do candidato da “nova política”, inimigo da corrupção e liberal empedernido e a volta à realidade de um político sedento de poder, autoritário e corporativista da velha guarda, envolto em suspeitas de “rachadinhas” com seus filhos e ex-esposa. Bem no início de seu governo, Bolsonaro anteviu sua obra: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”, disse. “Para depois começarmos a fazer” (17-3-2019). O capítulo da destruição segue avançado e inconcluso.
O presidente abriu seu mandato eliminando o Ministério da Cultura, hoje apêndice do Turismo, e seguiu em frente rumo à aniquilação da educação. As escolhas pessoais dos ministros da área seriam folclóricas, se não fossem letais. O primeiro deles, Ricardo Vélez Rodríguez, durou três meses, tempo bastante para mostrar sua bizarra incapacidade para o cargo, sabujice e, claro, falta de educação. Um mês após assumir ordenou aos diretores de escolas que filmassem os alunos cantando o Hino Nacional e citando o lema da campanha eleitoral de Bolsonaro. Será lembrado pela entrevista à revista Veja, revelando ternura pelos cidadãos do país. “O brasileiro viajando é um canibal”, disse. “Rouba coisas do hotel (...), acha que sai de casa e pode carregar tudo”. A associação entre roubo e canibalismo é pouco frequente.
Seu sucessor, o indescritível Abraham Weintraub, inapto para o trabalho e hoje em uma sinecura bem-remunerada no Banco Mundial, achou que sua tarefa era agredir supostos inimigos do governo. “Botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”, disse, e saiu às pressas do país. O atual ministro, Milton Ribeiro, assumiu em plena pandemia e só deixou traços de sua presença quando resolveu dar palpites, como o de que as universidades, por meio do pensamento existencialista, incentivam sexo “sem limites”. Ribeiro esteve ausente o tempo todo e nenhuma grave questão do ensino, entre muitas - ensino à distância, reabertura das escolas, etc - mereceu sua atenção.
Da educação, uma unanimidade, depende o futuro do país, e o país, com Bolsonaro, retrocedeu. O presente, que continua sendo a pandemia e quase 600 mil cadáveres, foi igualmente desprezado. Bolsonaro trocou ministros no auge da mortandade e nomeou um neófito, o general Eduardo Pazuello, um desastre anunciado. O governo recusou-se a comprar vacinas, enquanto uma rede de aproveitadores, com conexões em um ministério repleto de militares, tentou extorquir dinheiro com esquemas malandros de obtenção de vacinas, como revelou a CPI. Bolsonaro até hoje diz que o kit covid é eficaz, ao contrário das vacinas, das quais desconfia, e que houve supernotificação das mortes por covid-19 nos hospitais.
Na economia, após uma reforma da previdência que já vinha andando do governo anterior, o liberalismo fake do presidente fez estrago. O ministro Paulo Guedes tentou com sua PEC Emergencial (5 de novembro de 2019) fazer três reformas em uma - só criou confusão sobre as prioridades e a PEC foi tosqueada pelo Congresso. O ministro tornou-se cabo eleitoral de Bolsonaro, e a economia segue o ritmo de cágado herdado, sem que suas ações tenham feito diferença relevante.
Bolsonaro mal completou três semanas no cargo até que viessem à tona depósitos de R$ 24 mil na conta da primeira dama, feitos pelo amigo miliciano Fabrício Queiroz, envolvido em processo de ‘rachadinhas’ que tem como protagonista Flavio Bolsonaro - investigação semelhante é feito sobre o vereador Carlos Bolsonaro. Ao mesmo tempo, descobriu-se o laranjal do PSL, com suspeitas sobre o ministro do Turismo, Marcelo Antônio. Em vez de afastá-lo, Bolsonaro ejetou do governo o ministro da Justiça, Sergio Moro, que impediu Lula de concorrer contra Bolsonaro.
Após ataques sem parar contra a democracia, culminando com as manifestações de 7 de setembro, Bolsonaro tem à frente popularidade em declínio, inflação em alta, perspectiva de crescimento medíocre e uma crise hídrica grave. Abraçado às forças do atraso no Congresso, o presidente, que prometeu acabar com a reeleição, só pensa nisso e afirmou: “Eu sempre fui do Centrão”. Sua piromania na Amazônia e em outros biomas impede o Brasil de se engajar em outra agenda do futuro.
Em retrospecto há poucas coisas a comemorar e uma é certa: Bolsonaro foi impedido de fazer quase tudo o que pretendia. Mas não desistiu ainda.
Valor Econômico