quarta-feira, setembro 29, 2021

Mil dias de Bolsonaro no poder, quase nada a comemorar




Projeto dava possibilidade de prorrogar por mais 30 anos os contratos em vigor

Mil dias de governo de um presidente como Jair Bolsonaro parecem uma eternidade. Em contraste, foi rápida a queda do véu eleitoral do candidato da “nova política”, inimigo da corrupção e liberal empedernido e a volta à realidade de um político sedento de poder, autoritário e corporativista da velha guarda, envolto em suspeitas de “rachadinhas” com seus filhos e ex-esposa. Bem no início de seu governo, Bolsonaro anteviu sua obra: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa”, disse. “Para depois começarmos a fazer” (17-3-2019). O capítulo da destruição segue avançado e inconcluso.

O presidente abriu seu mandato eliminando o Ministério da Cultura, hoje apêndice do Turismo, e seguiu em frente rumo à aniquilação da educação. As escolhas pessoais dos ministros da área seriam folclóricas, se não fossem letais. O primeiro deles, Ricardo Vélez Rodríguez, durou três meses, tempo bastante para mostrar sua bizarra incapacidade para o cargo, sabujice e, claro, falta de educação. Um mês após assumir ordenou aos diretores de escolas que filmassem os alunos cantando o Hino Nacional e citando o lema da campanha eleitoral de Bolsonaro. Será lembrado pela entrevista à revista Veja, revelando ternura pelos cidadãos do país. “O brasileiro viajando é um canibal”, disse. “Rouba coisas do hotel (...), acha que sai de casa e pode carregar tudo”. A associação entre roubo e canibalismo é pouco frequente.

Seu sucessor, o indescritível Abraham Weintraub, inapto para o trabalho e hoje em uma sinecura bem-remunerada no Banco Mundial, achou que sua tarefa era agredir supostos inimigos do governo. “Botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”, disse, e saiu às pressas do país. O atual ministro, Milton Ribeiro, assumiu em plena pandemia e só deixou traços de sua presença quando resolveu dar palpites, como o de que as universidades, por meio do pensamento existencialista, incentivam sexo “sem limites”. Ribeiro esteve ausente o tempo todo e nenhuma grave questão do ensino, entre muitas - ensino à distância, reabertura das escolas, etc - mereceu sua atenção.

Da educação, uma unanimidade, depende o futuro do país, e o país, com Bolsonaro, retrocedeu. O presente, que continua sendo a pandemia e quase 600 mil cadáveres, foi igualmente desprezado. Bolsonaro trocou ministros no auge da mortandade e nomeou um neófito, o general Eduardo Pazuello, um desastre anunciado. O governo recusou-se a comprar vacinas, enquanto uma rede de aproveitadores, com conexões em um ministério repleto de militares, tentou extorquir dinheiro com esquemas malandros de obtenção de vacinas, como revelou a CPI. Bolsonaro até hoje diz que o kit covid é eficaz, ao contrário das vacinas, das quais desconfia, e que houve supernotificação das mortes por covid-19 nos hospitais.

Na economia, após uma reforma da previdência que já vinha andando do governo anterior, o liberalismo fake do presidente fez estrago. O ministro Paulo Guedes tentou com sua PEC Emergencial (5 de novembro de 2019) fazer três reformas em uma - só criou confusão sobre as prioridades e a PEC foi tosqueada pelo Congresso. O ministro tornou-se cabo eleitoral de Bolsonaro, e a economia segue o ritmo de cágado herdado, sem que suas ações tenham feito diferença relevante.

Bolsonaro mal completou três semanas no cargo até que viessem à tona depósitos de R$ 24 mil na conta da primeira dama, feitos pelo amigo miliciano Fabrício Queiroz, envolvido em processo de ‘rachadinhas’ que tem como protagonista Flavio Bolsonaro - investigação semelhante é feito sobre o vereador Carlos Bolsonaro. Ao mesmo tempo, descobriu-se o laranjal do PSL, com suspeitas sobre o ministro do Turismo, Marcelo Antônio. Em vez de afastá-lo, Bolsonaro ejetou do governo o ministro da Justiça, Sergio Moro, que impediu Lula de concorrer contra Bolsonaro.

Após ataques sem parar contra a democracia, culminando com as manifestações de 7 de setembro, Bolsonaro tem à frente popularidade em declínio, inflação em alta, perspectiva de crescimento medíocre e uma crise hídrica grave. Abraçado às forças do atraso no Congresso, o presidente, que prometeu acabar com a reeleição, só pensa nisso e afirmou: “Eu sempre fui do Centrão”. Sua piromania na Amazônia e em outros biomas impede o Brasil de se engajar em outra agenda do futuro.

Em retrospecto há poucas coisas a comemorar e uma é certa: Bolsonaro foi impedido de fazer quase tudo o que pretendia. Mas não desistiu ainda.

Valor Econômico