quinta-feira, dezembro 02, 2010

Dallari afirma que existem desvirtuamentos no CNJ

Adriano Villela

A criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2004, é apontada pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari como principal avanço no sistema jurídico brasileiro desde a Constituição de 1988.

No entanto, o professor emérito da USP e catedrático da Unesco identifica a necessidade de aperfeiçoamento do CNJ, especialmente no tocante às suas funções e no relacionamento com magistrados e tribunais.

“Talvez até por se tratar de um órgão novo, o Conselho tem tido alguns casos exagerados no desempenho de suas atribuições e tem agido quase que como um tribunal de inquisição”, afirmou, ao conversar com a Tribuna durante o III Congresso Brasileiro de Controle Público, encerrado na última sexta-feira, em Salvador.

Nesta entrevista, Dallari comentou sobre o estoque de processos aguardando julgamento no Brasil, a necessidade de revisão das normas processuais e a violência no Rio de Janeiro.

“Como tantas armas e tanta munição chega ao Rio de Janeiro? O Rio de Janeiro não produz armas, não produz munições e as quadrilhas ficam meia hora, 40 minutos, trocando tiros com as polícias”.

Dalmo de Abreu Dallari exerceu os cargos de secretário de Negócios Jurídicos da prefeitura de São Paulo e diretor da Faculdade de Direito da USP. Como professor, orientou a dissertação de Mestrado e a tese de doutorado do ministro do Supremo Tribunal Federal, Enrique Ricardo Lewandowiski.

Palestrante e conferencista no Brasil e no exterior, é autor dos livros: O futuro do Estado, Direitos Humanos e Cidadania, O poder dos juízes; O Renascer do Estado; Viver em Sociedade, entre outros..

Tribuna da Bahia – Quando se fala em controle público, é comum o comentário de que a fiscalização atrasa a realização das obras. Como compatibilizar as duas necessidades? Qual o papel do Judiciário nesta questão?

Dalmo de Abreu Dallari - Existe um aspecto curioso e é interessante ressaltar: só muito recentemente se pensou em controlar o Judiciário. A verdade é que desde o século XVIII, quando se instalou o tipo de Judiciário que nós temos, sempre se viu o Poder Judiciário como um poder controlador, não se levantou a questão de controlá-lo. Para isso, contribuiu o fato da absolutamente necessária independência do Judiciário, para que ele controlasse os demais poderes. Muitos arguiram que se fosse controlado, ele já não seria independente. É um argumento falso. Uma coisa não tem a ver com a outra. No entanto, isso atravessou os séculos XIX, XX e só agora e que se começou a se questionar a necessidade, que realmente existe, de controlar o Judiciário. Durante esse longo tempo em que não se cogitou este controle, em que se afirmou que haveria um auto-controle.

T.B. – Na década atual, houve algum avanço ou o cenário permanece o mesmo?
D.A.D. –
Felizmente houve avanços. Já na Constituição de 1988 - que foi feita com forte presença do povo e representantes de organizações sociais - houve este questionamento, foi discutida a questão do Judiciário. Entretanto, houve um lobby muito poderoso dentro da ideia do auto-controle, evitando qualquer outra possibilidade de controle. Apesar desta resistência, houve um avanço considerável quanto a importância verdadeira do Judiciário. A Constituinte de 1988 conseguiu alguns avanços. Entretanto, por causa das grandes resistências, ainda não se criou algum tipo de controle externo. Alguns anos depois, um deputado, Hélio Bicudo (PT-SP), propôs uma emenda constitucional em que, dentre outras coisas, aparecia a ideia do controle do Judiciário. Houve muita resistência, a tal ponto que o projeto, que é de 1992, ao final resultou na emenda 45, de 2004. Felizmente, para nós brasileiros, foi aprovada. Ela tem como objetivo promover o controle administrativo e financeiro do Judiciário e também verificar o cumprimento dos deveres funcionais, deveres legais, pelos membros. Criou-se de fato um instrumento importante. Entretanto, apesar de já haver algumas ações bastante positivas do Conselho, tem havido alguns desvirtuamentos. Talvez até por se tratar de um órgão novo, o Conselho tem tido alguns casos exagerados no desempenho de suas atribuições e tem agido quase que como um tribunal de inquisição.

T.B. - Como assim? O senhor poderia dar algum exemplo?
D.A.D. –
São algumas punições, acuações a juízes e tribunais que vão muito além daquilo que seria razoável num relacionamento responsável, mas respeitoso. Na verdade, tem havido agressões a juízes e tribunais. Além disso, o ministro Gilmar Mendes, então presidente do Conselho Nacional de Justiça porque era presidente do Supremo Tribunal Federal, fez aprovar um regimento interno que é um absurdo, porque prever uma tal quantidade de atribuições que o Conselho jamais será capaz de cumprir. São 35 itens de atribuições, que envolvem a participação de muitas pessoas, muito equipamento, que evidentemente o Conselho não tem. Foi incluída no CNJ uma competência que nada tem a ver com a função de controle do Judiciário, que é a competência para controlar o sistema penitenciário. Não faz parte do Poder Judiciário. No Ministério da Justiça já existe órgão próprio, específico para cuidar do sistema penitenciário. É um desvirtuamento! Entretanto, na síntese, nós estamos caminhando bem. Já temos um órgão de controle, é preciso que ele se aperfeiçoe. É muito importante ressaltar que o Conselho veio, de certo modo, suprir as deficiências das corregedorias dos tribunais, que sempre atuaram contra o juiz de primeira instância, poupando os desembargadores e os ministros.

T.B. – O tema mais comentado desde a semana passada é a violência no Rio e a repressão policial. De que forma o Judiciário pode contribuir nesta questão?
D.A.D. –
Antes de mais nada tem um aspecto essencial que a imprensa tem omitido e outros têm omitido também: é saber como tantas armas e tanta munição chega ao Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro não produz armas, não produz munições e as quadrilhas ficam meia hora, 40 minutos, trocando tiros com as polícias. Isso precisa ser cobrado. Está havendo uma falha grave das polícias, porque ai envolve meios terrestres, marítimos e aéreos; envolve polícia federal, polícia estadual, polícia de fronteira. Noticia-se a violência, discute-se se a polícia tem direito de matar ou não tem, se está agindo com excesso de violência. Tenho interesse no assunto, tenho lido principalmente os jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. Nenhum deles levantou esta questão. Se isso fosse levado a sério, secaria a fonte. O bandido ou a quadrilha, sem amas e munição, perde a força. Esse, a meu ver, é o ponto essencial.

T.B. – A Tribuna da Bahia vai publicar seu questionamento. Mas gostaria também de retomar a questão do Judiciário. O que a Justiça pode fazer?
D.A.D. –
Naturalmente, o Judiciário não está na linha de frente. O Judiciário pode fazer a prisão quando houver base, aprovar escutas telefônicas. Tenho a impressão que o Judiciário do Rio de Janeiro está conectado com isso. Neste momento, com este nível de violência, o Judiciário não tem um papel de primeira linha. Deve apoiar, de fato.

T.B – Qual a solução, na sua avaliação, para o problema de estoques de processo. Aqui na Bahia temos 500 mil ações criminais esperando julgamento?
D.A.D. –
Este é um problema grave, que envolve a responsabilidade do Judiciário, mas envolve responsabilidades, sobretudo do Poder Legislativo. De fato, nós temos um dos sistemas processuais mais atrasados do mundo, cheio de pormenores, de possibilidades de chicana e de recursos protelatórios. Os advogados usam amplamente este potencial. Temos processos de mais de 20 anos. Isto é um absurdo. Em parte é de responsabilidade do Judiciário, sem dúvida, mas em grande parte é também responsabilidades de quem deveria atualizar as leis e não atualiza. Quando o advogado entra com um recurso, e o juiz nega, cabe recurso à negação do recurso. Temos este arrastamento na primeira instância, na segunda instância e chega ao Supremo Tribunal Federal. É preciso, urgentemente, a atualização das leis processuais, tanto criminal como civil.

T.B. – Há ainda a questão de matérias que não são constitucionais que vão parar no Supremo Tribunal Federal?
D.A.D. –
Um aspecto que deve ser considerado é o excesso de competência do Supremo Tribunal Federal (STF). Isso tem servido para fortalecer a chicana, a protelação, como tem sido usado para favorecer corruptos, ilustres corruptos, mandatários. E preciso rever, mas rever em profundidade, a competência do STF, que a meu ver deveria ser exclusivamente um Tribunal Constitucional e não tomar conhecimento de situações menores, como vem fazendo.

T.B. – Na avaliação final, o que senhor aponta como principal avanço e principal retrocesso do Judiciário na última década, nos últimos cinco anos?
D.A.D. –
O principal avanço foi a Constituição de 1988. Agora estão acontecendo desdobramentos. Ela abriu o caminho. Sobretudo a emenda 45 foi um passo extraordinariamente importante no sentido de aperfeiçoamento das instituições jurídicas e judiciárias.

Fonte: Tribuna da Bahia