“Óbvio que Serra ia perder. Foi o biótipo que o derrotou, mais do que a presidente eleita que, como todos sabem, é a cara do Lula”
O Brasil “nos” odeia na mesma proporção em que “nós” o odiamos. Igualzinho. O sentimento de revanche e discriminação com relação a “paulistas” no “resto do Brasil” não é muito diferente do sentimento que Mayara Petruso explicitou no tuiter com relação a nordestinos.
Generalização? Exagero? Talvez. Mas uma coisa eu posso dizer sem a menor chance de errar: “nós, paulistas” não temos, definitivamente, o monopólio da estupidez.
Se o sujeito for nascido na capital, branco, palmeirense e tremer o erre na ponta da língua, aí pode esquecer. Vocês decerto sabem de quem estou falando.
Óbvio que Serra ia perder. Foi o biótipo que o derrotou, mais do que a presidente eleita que, como todos sabem, é a cara do Lula. O homem-tucano é uma espécie ultrapassada e fora de contexto. O contexto ou o resumo da história localiza-se na zona sul da cidade, depois de Interlagos. São as classes C e D que representam o Brasil que invadiu São Paulo à revelia, para além de seus domínios morais e de conduta. Uma novidade que sopra do abismo. Um oxigênio que a rua Oscar Freire terá de aprender a respirar na marra e na base do ódio, sim. E é esse abismo que movimenta a economia do estado, como acontece com o “resto” do Brasil. O nome disso, caros coleguinhas do Dante Alighieri e do Clube Harmonia, o nome disso é distribuição de renda, e vocês fiquem à vontade para torcer os narizes, parar em fila dupla, viajar pra Disney e tuitar desbragadamente, não vai adiantar nada, perderam.
Um palpite. Cada vez mais, nesse Brasil pós-Lula, o “paulista” será menos brasileiro, dentro e fora de seus limites territoriais. Eu acho isso interessante. Anotem. No opportunity. E aqui cabe mais um vaticínio.
Os netos e bisnetos do coronel alagoano podem até adotar os shoppings e condomínios que imitam o modo de vida babaca do paulistano, mas a alma paulistana, sobretudo aquela que imigrou da Europa no final do século XIX e se fez com sacrifício, estudo, caretice e muito trabalho, essa cabe inteira no Parque Antártica, e vai ficar por lá mesmo. Não adianta. Nenhum Felipão vai dar jeito. As únicas coisas que se duplicarão a partir dessa alma - por uma questão de reciprocidade e devolução - são o ressentimento, a discriminação e o racismo, devidamente tropicalizados é claro.
Isso quer dizer que o casal, São Paulo e Brasil, vai continuar dormindo em camas separadas e fingindo amor eterno porque – aparentemente e como reza a etiqueta e as conveniências - um não pode viver sem o outro. Até que um grupo de tucanos-demoniacos, depois de muita humilhação e de mais algumas derrotas no Planalto Central, vai levantar a bandeira de São Paulo de Piratininga, e dizer chega. Quebrarão a cara, evidentemente.
Experimentem viajar pelo Brasil com um veiculo emplacado em São Paulo-SP. Abram a boca num boteco carioca e peçam “um chopis e dois pastel de carrrne”. Bem, isso é ridículo, isso é o lugar-comum, o básico. Vi coisas muito piores. Trabalhei com turismo em Santa Catarina, e testemunhei a volúpia dos nativos pela jugular de famílias paulistas, incluindo as criancinhas. Também vendi antenas parabólicas e títulos de clube de campo, orientado para xavecar aquela gente mal-humorada e comedora de pizza.
O ódio e o fascismo, repito, não são exclusividades dos alunos da Uniban. O fato de Geisy ser uma biscate é irrelevante diante da corrida ancestral pela estupidez – que, repito, não é monopólio de ninguém. Tive uma loja de carros usados e uma confecção de fundo de quintal que, graças a Deus, faliu. Conheci a sanha dos credores e dos senhorios. Pedi dinheiro emprestado, quebrei, levantei, sacudi a poeira, comi a mulher do gerente do supermercado “me fode, paulista” e, em 1987, tive a alma subtraída numa praça de pedágio em Jaguariúna. Uns sessenta quilômetros depois, perto do trevo de Mogi Mirim, a recuperei e dei a volta por cima e caí outra vez, assim sucessivamente: fiz muita merda e vi muita merda pelo caminho. O ódio brasileiro sempre esteve ao meu lado, e eu garanto que não é coisa que inventei. Um treco que se adquire por inércia e a partir do nascimento, que a gente leva no banco do táxi como se fosse um passageiro estressadinho. Se você vacilar, ele vira seu cúmplice.Vocês nunca andaram de táxi? Não fui eu quem inventou o complexo de vira-latas. Nem o de Pitbull. Vivi em Belém do Pará, e foi lá, num pasquim chamado PQP, que vi meu primeiro texto publicado por Raymundo Sobral: resisti incríveis três edições. Da pqp segui pra Macapá e passei alguns meses na Guiana Francesa, onde travei contato com Tomezinho, piloto e ladrão de aeronaves de pequeno porte que, além de ser um cara prático e monossilábico, me deu uma carona até a Serra da Canastra, bem longe da bacia Amazônica. Custou caro. Uma vendeta que percorreu 3 mil e tantos quilômetros. Tive de aprender a rezar para Nossa Senhora das Muambas. Vendi uns bagulhos trazidos da fronteira e comprei uma draga em sociedade com o diabo, ele mesmo, Tomezinho. Passei um ano no garimpo (essa história eu conto no meu próximo livro...), e achei alguns xibius que não valeram a lama em que me meti, e aí, antes de ser assassinado, resolvi me pirulitar e voltei pro sul. Onde conheci Marisete que de dia era manicure e de noite trabalhava no Scorpion’s Club. Isso aconteceu um ano antes de eu encalhar uma escuna num banco de areia no rio Camboriú, entre outras cositas legales e ilegales. Nesse meio tempo, fui testemunha de muita intolerância, perseguição e abandono. Essa tuiteira, Mayara Petrusi, é café pequeno. A propósito: qual a diferença de desejar o afogamento para os nordestinos, e dizer que Machado de Assis, apesar de feio, gago e preto era um sujeito bem humorado? Diferença nenhuma. Inclusive a platéia é a mesma. Os mesmos mamelucos baladeiros que lincharam a tuiteira, aplaudiram efusivamente o racismo da sinhá Lygia Fagundes Telles. Eta Brasilzão, terra de Iaiá.
Voltando à estrada. Percorri o Vale do Itajaí vendendo antenas parabólicas, dei um rolê em Brusque ( capital do moletom), fiz bons amigos em Balneário Camboriú, e sosseguei temporariamente o facho na Ilha de Santa Catarina. Troquei um Fiat Uno por uma casa de madeira na praia do Santinho. Era 1993 e lá nessa casa passei alguns meses na companhia de uma dúzia de hare-krishas. Eles acampavam no terreno vizinho e eu acabei me apaixonando pela mulher do monge hare-hare. Bem, posso dizer que ele não aprovou a insubmissão de sua escrava e quase saímos na porrada, lembro como se fosse hoje: “Vou te encher de porrada, paulistafilhodaputa”. “Vem monge, pode vir. Além de monge é corno”. O fato é que eu ia desjarretear os membros daquele babaca, meu sangue bandeirante borbulhou nas veias, e ele arregou quando vislumbrou altares profanados, velhos, crianças e mulheres grávidas passados a fio de espada, cidades devastadas, sangue, chamas e lágrimas vãs; o monge arregou quando viu Raposo Tavares, Anhanguera, Dias Velho e Hebe Camargo brilharem nos meus olhos vermelhos de “paulistafilhodaputa”. Tirei o monge do sério.
Mas eu já estava de saco cheio daquela pantomima e fui pra Porto Alegre comer mondongo no mercado público, e tchau. Uma semana depois estava de volta a Santos, logo me engajei na campanha de um dentista mal-intencionado que queria ser vereador. Fiz um jingle infame pra ele: “O Povo/ tá na boca do povo/ Dinho dentista” - nessa época morava no José Menino e cismei que ia comer a Lelé que não queria saber de mim, ela tinha nojo de mim. Também morei em E.S. do Pinhal e dei umas ciscadas na Alta Mogiana, em São João da Boa Vista pedi misericórdia pra Nossa Senhora dos Encalacrados e fiz promessas que sabia que jamais iria cumprir, depois, fui morar nas dependências de um curtume em Andradas-MG. Eu era o responsável pela seção de degola dos coelhos.
Saí de São Paulo-SP em 1985 e ainda não voltei. Ou melhor, voltei, dei um alô de 7 anos pra rapaziada e tenho saudades de cinco pessoas, as demais me incensaram quando tinham que incensar, me festejaram quando tinham que festejar, me traíram quando tinham que trair e me jogaram no lixo quando não precisaram mais de mim. Normal, tudo dentro do script, de modo que peguei minha viola, pus na sacola e dei mais um foda-se amplo, geral e irrestrito pra audiência. E fui viajar.
Estou há 25 anos na estrada e vivenciei situações de racismo e intransigência muito mais sórdidas e muito mais escrotas do que a tuitada imbecil de Mayara Petruso, numa época nada virtual e igualmente escrota. A diferença para os dias de hoje é que nossos coleguinhas não tinham, digamos, os “instrumentos” para serem eles mesmos. Todavia, o ódio sempre esteve presente – e, embora nunca tenha sido prerrogativa de preto, branco, nem de monge nem de executivo, ele, o ódio brasileiro, sempre foi muito bem preservado em escaninhos, divisões, muros e camadas de hipocrisia. Negá-lo é fomentar mais ódio. As pessoas o guardam como se fossem jóias de família. Quem quiser pode chamar de alegria brasileira.
Foi Pasolini quem inventou a internet.
Passei um final de semana inesquecível em Taguatinga, apesar dos carrapatos que trouxe na virilha. Perdi mil noites numa só noite no Largo do Machado e, por dois anos, vivi um amor de verdade em Copacabana. Nos idos dos oitenta, eu abastecia a camionete num posto de gasolina perto de Pouso Alegre, ia pra Ouro Fino trocar um guincho por um lote de 10 x 25 na cidade do menino da porteira. Nesse dia, aprendi que as palavras “cordialidade” e “imparcialidade” são as mais falsas e canalhas do dicionário. Não queria escrever isso aqui. Também não vou me estender sobre o incidente e a confusão que acorreu imediatamente na seqüência. Gente morta. Basta dizer que, à época, eu era conhecido como “paulista” e que, naquele dia enfumaçado, os fatos não estavam a meu favor. Como não estão agora. No entanto, como não sou 100% mentiroso e procuro - na medida do possível - não me omitir diante daquilo que me é cuspido nas fuças, vou generalizar e cuspir de volta. Gostem ou não gostem, aqui vai: o Brasil não combina com São Paulo e São Paulo não combina com o Brasil. Existe ódio. Um sentimento mal disfarçado, podre, latente, familiar e recíproco. E não é pouco ódio não.
Àqueles que quiserem acreditar no amor, eu desejo toda a sorte do mundo. Claro que sim, vamos sempre dar uma chance para a paz, para a solidariedade e amizade. Corremos o risco de levar um tiro de um fanático-babaca, mas se não fosse por isso eu já estaria morto mesmo. O importante é não esquecer que o ódio nos espreita e carrega milhões de disfarces e boas intenções, o ódio brasileiro afaga, convida pra ir jantar e é o melhor anfitrião do mundo, o ódio é doce como uma compota caseira e sempre concorda contigo, ele é o rei dos elogios e às vezes aponta pequenos defeitos para valorizar as virtudes que nem você sabia que tinha, o ódio é surpreendente e encantador, ele tem muita paciência, o ódio é desprendido e jamais vai perder o timing, ele é a Vovó da Casa do Pão de Queijo, ele é bom vizinho que planeja seu fim toda vez que o beija na face e, uma hora, – pode escrever - ele vai dar o bote e estragar tudo, de leste a oeste e de norte a sul. Ininterruptamente. Portanto, quem puder amar, que ame e seja feliz e atire a primeira flor...porque a primeira pedra me atingiu naquela tarde no posto de gasolina. De chofre, bem no alvo, de forma irrevogável e para sempre, e as outras pedradas viriam na seqüência e chegam até hoje, implacáveis. Vocês não viram Easy Rider? Idem,ibidem.
Ou alguém pensa que aqui no Brasil é diferente porque as pessoas fingem que levam Sergio Bianchi a sério? Aqui o ódio é pior, muito pior.
* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.
Fonte: Congressoemfoco
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