Por: Helio Fernandes
Um livro que não circulou, a ditadura intimidou até o editor Carlos Lacerda
A partir de 15 de março quando escrevi os primeiros artigos assinados, o ministro da Justiça poderia ter me confinado. Seria uma burrice, mas não seria a violência do século como ocorreu depois, já que não havendo então nenhuma decisão judicial a respeito dos meus direitos individuais e profissionais (não confundir com direitos políticos) o entendimento do ministro, eventual e ocasionalmente poderia prevalecer sobre o entendimento de todos os grandes juízes e juristas deste País, e ele poderia sustentar que os Atos ainda estavam em vigor e que eu não poderia exercer a minha profissão, apesar disso ser uma barbaridade que clama aos Céus.
Mas a partir da decisão do juiz Hamilton Leal, que numa sentença lapidar (e isso sem precisar esperar 20 dias com o processo nas mãos, decidindo no mesmo dia em que recebeu o processo, apesar de naquela altura eu estar em liberdade e não fazer nenhuma diferença que ele demorasse mais 10 ou 20 dias para sentenciar), decidiu que meus direitos individuais estavam intactos e inatingidos, o meu desterro passou a ser não só uma burrice, mas uma violência, uma prepotência, uma arbitrariedade e mais do que tudo isso: um inacreditável desrespeito a uma decisão judicial, em pleno vigor. Burrice, prepotência, violência, arbitrariedade e desrespeito à Justiça que se caracterizam como A VIOLÊNCIA DO SÉCULO NO BRASIL, e praticada por um homem que tudo indica será nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal!
A tudo isso, junte-se a traição e o perjúrio. TRAIÇÃO, pois tendo recebido uma intimação de um órgão subordinado ao Ministério da Justiça para ir prestar simples esclarecimentos, de lá só “saí” (depois de 7 horas de permanência) preso e desterrado. Conforme declararam na hora os meus advogados (esses bravos e incansáveis Mário de Figueiredo, George Tavares e Evaristo de Morais) foi a primeira vez que acompanharam um constituinte intimado a prestar declarações e este ficou preso e foi logo desterrado, na mais brutal e gritante das ilegalidades.
Vivemos tempos melancólicos e ominosos, quando uma autoridade do gabarito do ministro da Justiça (o gabarito se refere ao cargo e não ao seu ocupante) prepara uma armadilha para um cidadão, convida-o a ir prestar declarações e sem qualquer explicação, além da explicação da força e da prepotência, desterra-o no mais distante do território nacional. (E o sr. Gama e Silva ainda teve a coragem, falando com o sr. Carlos Lacerda, no Recife, de classificar a si mesmo de “jurista e liberal”. Naturalmente meu gosto pela ironia não vai tão longe.)
Sem falar que nessa noite e durante o dia seguinte, em que teoricamente fiquei esperando a condução que me conduziria a Fernando de Noronha, fui enclausurado numa cela imunda, sem janelas, sem o mínimo de decência, fechado com pesada porta e cadeado, numa nova violação da Lei e da Constituição, que me garantem prisão especial.
O crime de PERJÚRIO, S. Excia. cometeria logo depois. Pois tendo declarado na Portaria com que me desterrou que eu estava sendo punido por ter escrito artigos assinados (e portanto infringido os Atos Institucionais, segundo ele ainda em vigor), logo depois, no Recife, perante uma multidão de jornalistas nacionais e estrangeiros, declarava com a mais cândida das irresponsabilidades: “O jornalista Helio Fernandes está apenas com seu domicílio localizado em Fernando de Noronha e nada impede que continue a exercer a sua profissão de jornalista”. Quer dizer: fui desterrado por escrever e, logo depois, ainda desterrado, o ministro diz acintosamente que eu “poderia continuar escrevendo”. É uma pena que não haja Prêmio Nobel para a irresponsabilidade, pois esse ninguém tiraria do ministro Gama e Silva.
Além do mais, é tão precária a comunicação de Fernando de Noronha com o resto do mundo, que de lá, só mesmo o ministro Gama e Silva poderia continuar a exercer o seu cargo. Pois estando lá ou estando aqui, tanto faz, o cargo continuaria da mesma forma vazio.
Quando Hitler, invadiu a Renânia, a Áustria, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo, evidentemente que não revelava suas intenções, não se declarava abertamente agressor e invasor. Era sempre “o pacifista”, “o protetor” desses povos, que sempre, antecipadamente, agitava com os melhores elementos da sua quinta coluna.
Pois a luta contra os interesses estrangeiros, a luta pela libertação nacional tem também os mesmos aspectos. Evidentemente os formidáveis interesses que eu contrario; tudo o que eu represento hoje de empecilho às grandes tacadas de sempre, que levaram o Brasil a esta miserável condição de colônia desprezível quando tinha e tem tudo para ser potência mundial: a minha luta pela sobrevivência da indústria nacional asfixiada pela concorrência poderosa e invencível dos trustes internacionais; a minha luta contra os grandes frigoríficos estrangeiros; contra os criminosos trustes dos laboratórios, que mesmo nos Estados Unidos chegam a enfrentar e ameaçar o próprio governo; a minha objeção obstinada contra o escândalo do século que foi a compra da AMFORP e depois da Telefônica, esta não pela compra em si, mas pelo preço pago; a minha firmeza e determinação no sentido de não perdermos o trem da revolução atômica como já perdemos o bonde da revolução industrial; tudo isso fez com que minha cabeça fosse posta a preço, a qualquer preço, mesmo o mais alto e o mais caro. A minha destruição vale tanto hoje em dia que todos os métodos são válidos para atingir esse objetivo.
Mas como sempre, esses interesses estão tão habilmente mascarados, que alguns ingênuos chegam a arriscar a vida para defendê-los, sem perceber os interesses fabulosos que se movimentam nos bastidores ou até mesmo garantindo que esses interesses nem existem.
É sempre assim. Não há gente capaz de morrer por Moisés Tschombe, jurando sobre a Bíblia que ele quer a independência do Congo, quando na verdade, Tschombe só se movimenta à medida e à proporção da paga que recebe dos seus patrões estrangeiros?
Perón não é ainda um ídolo para milhões de argentinos, apesar de ter sido sempre, no poder ou fora dele, um lacaio dos trustes que o enriqueceram enquanto saqueavam e destruíam economicamente o seu grande país?
A opinião pública vive permanentemente iludida. Os fatos mais simples e mais comezinhos são deturpados deliberadamente, para servir aos grandes interesses antinacionais. E os mais ingênuos e mais desinformados, na maioria das vezes, se deixam levar pelas aparências, fazendo inconscientemente o jogo dos formidáveis interesses que nunca aparecem, controlam tudo por trás dos bastidores, de gabinetes refrigerados, cômoda e confortavelmente instalados.
Foi o que fizeram, aliás, no episódio dos artigos dos dias 19 e 20 de julho. Destorceram deliberadamente o problema e a sua discussão. O importante não era saber se eu DEVIA ou não DEVIA escrever os artigos. Isso é discussão para oportunistas, para carreiristas, para os “hábeis” de todas as horas, que não perdem oportunidade para servirem ao Poder e se servirem dele.
A mim, aos homens como eu, que se guiam sempre pelo respeito à LEI, o que importa é saber se eu PODIA ou não PODIA escrever.
PS – Assim que chegou a Fernando de Noronha e viu que eu estava escrevendo um livro, não teve nenhuma dúvida: “Esse livro é meu, (Nova Fronteira) será um estrondo”.
PS 2 – Foi impedido e intimidado, não editou o livro. A ditadura era maior do que ele. Amanhã, conto qual foi o outro grande editor que queria o livro, a ditadura não deixou.
Fonte: Tribuna da Imprensa