Por: Carlos Chagas
BRASÍLIA – Hoje, dois terços da população falam por ouvir falar. Quando falam. Os que tinham idade suficiente para entender e até para viver aqueles idos de 1964 continuam divididos.
Para uns, tratou-se de um golpe cruel vibrado nas instituições democráticas, ao qual seguiram-se 21 anos de ditadura, tortura, censura à imprensa, supressão dos direitos humanos e prevalência do poder econômico sobre os anseios das massas.
Para outros, foi um basta à subversão e à corrupção, uma interrupção no processo de anarquia e de desagregação da sociedade ameaçada pelo perigo comunista expresso pelo próprio governo.
Contradiz-se também a farta literatura produzida de lá para cá a respeito do movimento dito militar. Tanto tempo depois, será preciso atentar para a importância de não dividir o Brasil de quarenta anos atrás entre mocinhos e bandidos, tanto faz a posição de onde se observam aqueles acontecimentos.
Nem as Forças Armadas foram às únicas responsáveis pela truculência verificada nas duas décadas seguintes, nem poderão apenas ser tidas como as mãos do gato, utilizadas pelas elites para retirar as castanhas do fogo. Tiveram sua responsabilidade explícita, exposta através dos governos de cinco generais-presidentes e de duas juntas militares, mas, no reverso da medalha, evitaram o quanto foi possível a transformação do Estado brasileiro em apêndice desimportante dos interesses políticos, econômico-financeiros e até culturais do conglomerado internacional que hoje nos domina, e ao planeta também.
Indaga-se como foi possível cair feito fruta madura um governo democrático, forjado na luta e na resistência de três anos antes em favor do cumprimento da Constituição e da posse do vice-presidente, após o histriônico episódio da renúncia do presidente Jânio Quadros.
João Goulart terá sido derrubado mais pelas suas virtudes do que por seus defeitos, mas estes foram imensos. Ingenuidade, em primeiro lugar, se imaginar que reformas sociais profundas poderiam ser conquistadas no grito, de uma só vez, com as elites conformando-se em abrir mão de seus privilégios sem organizar-se nem resistir. Depois, ilusão de que as massas dispunham-se a respaldá-lo acima e além dos comícios e da retórica fácil. Acrescente-se a frágil concepção de que, por estar exercendo legitimamente o poder, contaria com a anuência das estruturas que buscava modificar e reformar. A favor delas, deixando as coisas como estavam, obteria sucesso, o que seria uma incongruência para quem pretendia passar à História como um reformador igual ao seu mestre, Getúlio Vargas.
Demonstrou-se, nos eventos de 31 de março e de 1o de abril, a precariedade do poder formal. O "esquema militar monolítico" que defenderia a legalidade só existia na cabeça dos áulicos palacianos. Quando precisou das Forças Armadas para garantir-lhe o direito de continuar governando, João Goulart percebeu havê-las perdido por inteiro. Parte foi porque admitiu "reformá-las", prestigiando tentativas de quebra de hierarquia. Parte por conta da formidável movimentação das elites econômico-financeiras infensas a perder privilégios. Nesse aspecto, a mídia exerceu papel fundamental, inoculando na opinião civil e militar o germe da insegurança.
Organizada, com fartura de dólares e de pensadores, a direita dispunha de um objetivo claro: impedir quaisquer reformas capazes de arranhar-lhe os benefícios, mesmo que para isso se tornasse necessário desestabilizar, primeiro, e depor, em última instância, um governo constituído.
Já as esquerdas...
As esquerdas dividiam-se entre a euforia inconseqüente da suposição de que já tinham conquistado o poder e alterado estruturas ainda imutáveis, de um lado, e, de outro, as eternas desavenças entre seus diversos grupos inconciliáveis. No meio delas, mesmo percebendo que a reação se avolumava, achava-se um presidente cuja única saída acabou sendo a fuga para frente. O diabo é que diante dele não se descortinava a avenida das reformas sociais, mas o precipício do retrocesso e do caos institucional.
É claro que as teorias cedem sempre, quando surgem os fatos. A dúvida dominava os dois lados. Os conspiradores ignoravam a facilidade com que o governo se dissolveria. Estavam preparados para a guerra civil, capaz de levar meses. Por isso, não se animavam ao primeiro gesto ostensivo. Precisou um general meio doido botar precipitadamente suas tropas na rua, em Juiz de Fora, mesmo sem saber se seria esmagado em poucas horas. Do Rio, os principais chefes da conspiração tentaram demovê-lo, exigindo que voltasse com os poucos tanques e canhões postos na estrada União e Indústria. Mourão Filho reagiu, não faltando em sua negativa às quixotescas afirmações que ali estava para "vencer ou morrer". Não morreu, senão anos depois, de doença e de desânimo, porque quem venceu foram os outros. Numa questão de horas mudaram de lado as tropas ditas legalistas que subiram a Serra de Petrópolis para barrar a progressão dos revoltosos mineiros. Em São Paulo, no Nordeste, no resto do País, a mesma coisa.
João Goulart estava no Rio, negou-se a autorizar que uns poucos aviões da FAB ainda sob as ordens de seu ministro da Aeronáutica bombardeassem as tropas do general Mourão com napaln. "Vai matar muita gente, isso eu não permito!"
Para não ser preso, voou até Brasília, mas, na capital, sua segurança revelou-se ainda mais precária. Buscou resistir no Rio Grande do Sul, imaginando a repetição dos episódios de 1961. Esqueceu-se de que a História só se repete como farsa. Lá, o governador não era mais Brizola, porém Ildo Meneghetti, golpista. O general que ainda lhe era fiel, Ladário Pereira Telles, garantiu-lhe apenas por uma hora condições para conduzi-lo ao aeroporto e tomar o rumo do Uruguai. Aceitou. Ladário indagou de Leonel Brizola, também presente, se viajaria junto. Resposta: "Eu não me chamo João Goulart! Vou resistir!" (Continua amanhã).
Fonte: Tribuna da Imprensa