Luiz Flávio Gomes
A garantia da não auto-incriminação, que contempla, dentre outros, o direito ao silêncio, vale para a fase investigativa inicial. Por força dessa garantia, ninguém é obrigado a se incriminar. Como uma das emanações mais legítimas do princípio da presunção de inocência, ela envolve: (a) o direito de não declarar nada (direito ao silêncio – CF, art. 5º, inc. LXIII = direito de ficar calado; é a manifestação passiva da defesa); (b) se declarar, direito de não declarar contra si mesmo; (c) direito de não confessar sua responsabilidade – PIDCP, art. 14.3; CADH, art. 8.2; 8.3; (d) direito de mentir (não há o crime de perjúrio no Brasil); (e) direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa (ou que lhe prejudique). Exemplo: direito de não participar da reconstituição do crime, direito de não ceder material gráfico para exame grafotécnico (STF, Ilmar Galvão, Informativo STF 122, p. 1) etc.; (f) direito de não produzir nenhuma prova que envolva o seu corpo (exame de sangue, exame de urina, bafômetro etc.).Apesar de todas essas clarezas conceituais (e da jurisprudência torrencial do STF no sentido de que ninguém é obrigado a se incriminar quando é ouvido como suspeito ou indiciado ou testemunha etc.), a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, depois de dois anos de discussão, aprovou (no princípio de novembro de 2008) o projeto de lei que prevê pena de prisão para quem mentir, calar a verdade ou manter-se em silêncio quando convocada para depor na qualidade de acusada, de testemunha, de perito, de contador, de tradutor ou de intérprete, seja perante uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), seja perante qualquer outra autoridade investigativa. O projeto é de autoria dos membros da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) dos Correios, que se sentiram tolhidos em seus poderes investigativos em razão de incontáveis liminares concedidas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para se evitar a prisão ou o processamento dos convocados. Estes alegam perante o STF que correm risco de prisão ou de processamento quando exercem o direito ao silêncio. O conflito aberto entre o STF e o Legislativo brasileiro a cada dia ganha um novo capítulo. O STF, como guardião da Constituição, a interpreta e dita suas decisões. Muitas vezes, isso conflita com os interesses (normalmente eleitoreiros) dos parlamentares. A reação destes últimos manifesta-se, com freqüência, na aprovação de projetos estapafúrdios e inconstitucionais.O STF vem concedendo dezenas de liminares aos convocados pelas CPIs sob o argumento de que o direito ao silêncio é um direito constitucional, derivado do princípio da presunção de inocência, que assegura a garantia da não auto-incriminação (ou seja: ninguém é obrigado a se incriminar). Os parlamentares, que muitas vezes estão mais preocupados com os holofotes que com a validade do texto constitucional, afirmam que essas liminares atrapalham as investigações. O parlamento brasileiro, com freqüência, não entende que o direito de investigar (e de produzir provas) não é absoluto.Nem tudo que é útil para provar um delito é legalmente ou constitucionalmente ou, ainda, moralmente válido. A tortura, por exemplo, pode ser um frutífero meio probatório, mas constitui prova ilícita (não-válida). A atividade de investigar e de provar, no estado de direito constitucional, tem limites (incontáveis limites). O ato de investigar, que é muito relevante, não é superior a outros valores ou princípios constitucionais. As provas devem ser colhidas de acordo com o ordenamento jurídico vigente.Ainda que este ordenamento jurídico apresente certas limitações à investigação (por exemplo: direito ao silêncio), mesmo assim, tudo está centrado no respeito aos valores superiores que guiam o estado de direito constitucional brasileiro (e desembocam na dignidade humana). As pretensões, demagógicas acima de tudo, de alguns parlamentares de quebrar a valia dos princípios constitucionais não podem se sobrepor à vontade do constituinte original. Nenhum país civilizado –no mundo todo – admite poderes ilimitados na produção de provas que se destinam a derrubar a (relativa) presunção de inocência. As liminares do STF, diferentemente do que afirmam os parlamentares, não constituem “um duro golpe contra o interesse público”, além de “aviltarem o direito dos cidadãos e da sociedade de acesso à verdade real”. Ao contrário. Pensamos que as liminares do STF atendem o interesse público de preservação dos valores, princípios e regras do estado de direito constitucional vigente. O STF não cumpriria seu papel de guardião da Constituição caso se comportasse de forma diferente. As liminares, de outro lado, não aviltam o direito do cidadão ou da sociedade de acesso à verdade real porque tal acesso não é irrestrito. O uso da tortura está vedado, logo, não se pode querer a verdade real por meio dela. A verdade real, na atualidade, como se vê, não passa de uma verdade processual (como diz Ferrajoli), ou seja, de uma verdade que se pode alcançar de acordo com o devido processo legal. O STF, de outro lado, não está dando nenhuma interpretação “dilatada” ao princípio da presunção de inocência. Está cumprindo rigorosamente o que está escrito no ordenamento jurídico vigente, sobretudo no art. 8º da CADH (Constituição Americana de Direitos Humanos, que possui valor constitucional, consoante voto do ministro Celso de Mello – HC 87.585-TO). As autoridades investigativas (especialmente as CPIs) devem se conscientizar de que não existe poder absoluto no estado de direito constitucional. E quem investiga hoje pode ser investigado amanhã (caso viole as regras legais ou constitucionais ou internacionais vigentes). Quem aprova uma lei absurda hoje pode também ser o investigado de amanhã. A sociedade clama pela apuração das denúncias, mas ao mesmo tempo está dizendo (sobretudo por meio do STF) que há regras éticas e jurídicas que devem ser observadas. A leitura que alguns parlamentares fazem da Constituição não condiz com sua condição de representante legítimo do povo. Jogar para o povão, com oportunismo eleitoral, não é a mesma coisa que construir uma nação digna. O estado de polícia não pode se sobrepor ao estado de direito constitucional. O direito penal do inimigo (que se funda na violação dos direitos e garantias fundamentais) não pode substituir o direito penal do cidadão (e todos somos cidadãos e assim devemos ser tratados, em qualquer que seja o momento da persecução penal). O plenário do Senado Federal, com certeza, ao não embarcar na emocionalidade eleitoreira de alguns parlamentares, deve rejeitar o projeto de lei demagogicamente aprovado pela CCJ.
Por; Última Instância