“Feira de Santana-Ba - Tenho 25 anos, não bebo e nunca fumei. Sangue A+. Estou colocando meu rim a venda. Interessados entrar em contato pelo e-mail: aaaa@hotmail.com”. O inusitado anúncio, que inicialmente soa como uma brincadeira de mal gosto, trata-se da mais nova modalidade de livre negociação via internet. Sem nenhum tipo de restrição, facilmente, centenas de mensagens de venda de tecidos e órgãos humanos, como rins, medula óssea, córnea e até mesmo o fígado, podem ser encontradas em qualquer site de busca.
Conforme especialistas, trata-se do mais puro retrato da violação humana, de pessoas que não hesitam em aproveitar o alcance da rede e o desespero de gente que passa anos à espera de uma doação e lançam seu preço, com intuito apenas de fechar um grande negócio. Para isso, nem mesmo a lei, que classifica a ação como crime passível de cadeia, assim como os riscos à própria vida, são levados em consideração.
O valor da transação, em geral, varia entre 30 mil e R$ 100 mil, mas pode chegar a até R$ 200 mil. Surpreendentemente, todo o acordo é feito através da internet. É pela rede que comprador e vendedor se conhecem, trocam informações sobre condições de saúde, combinam detalhes do processo de compra, compartilham exames clínicos e até pechincham. Geralmente, só na hora de fazer a cirurgia é que eles se encontram.
Para se ter idéia, em troca de dinheiro, alguns ignoram o limite da sobrevivência e chegam a anunciar a venda, não apenas de um, mas de dois órgãos de uma só vez. E o que é pior, por apenas R$ 1.500, como mostra o anúncio: “Vendo meu rim ou uma córnea urgente. Estou em
Minas Gerais e precisando de 1. 500 reais urgente. Não possuo bens para vender”.
No entanto, “infelizmente” histórias como essas são comuns a homens e mulheres de todos os cantos do país. Altas dívidas, custo da escola dos filhos, dinheiro para pagar um casamento e vontade de sair do Brasil são as principais razões apontadas por quem publica um anúncio para vender uma parte de si. Os anunciantes contam dramas econômicos semelhantes, quase sempre ligados a dificuldades para quitar dívidas. Alguns chegam a afirmar conhecer os riscos - legais e de complicações na cirurgia, assim como os questionamentos morais.
Pelas leis brasileiras, tanto o anúncio quanto o comércio são ilegais e passíveis de prisão. As penas variam de dois a 20 anos. O artigo 9º da lei dos transplantes afirma que “é permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fins de transplante ou terapêuticos”, desde que sejam órgãos duplos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o doador de continuar vivendo sem risco para sua integridade. (Por Fernanda Chagas)
Só a Justiça autorizando
A legislação permite apenas doação entre parentes vivos consangüíneos de até quarto grau. No entanto, antes da formalização do ato, é necessária a autorização do Ministério Público. Se for entre pessoas que não têm ligação familiar, o pedido deve ser feito à Justiça. No entanto, conforme os próprios vendedores explicam, nem toda essa burocracia, serve de empecilho para a negociação. Os doadores despistam a fiscalização se apresentando como parente distante da pessoa que receberá o órgão, ou como um amigo da família. Anteriormente, eles combinam o que vão dizer ao juiz e, na maioria das vezes, a autorização é dada. Só depois disso é que o dinheiro é transferido para a conta corrente do vendedor, conforme explicou, um deles, que só aceitou falar se não fosse identificado.
Até então, nenhuma denúncia na Bahia, segundo dados da Secretaria de Saúde do Estado (Sesab), foi feita ao órgão. Contudo, para o coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – secção Bahia, Arjones Abril Neto, a comercialização é proibida e fere o princípio da dignidade humana.
“Isso tudo é um absurdo. É uma violência contra a humanidade. É certo que temos que incentivar a doação, mas a mercantilização, sem dúvida, é crime contra a humanidade e deve ser fiscalizada”, destacou. De acordo com a Sesab, os hospitais não têm como investigar o comércio de órgãos, a não ser que seja feita alguma denúncia.
Em todo o Estado, existem cerca de 3.900 pacientes na fila geral de transplante (rins, córnea, fígado e medula óssea). Dessas, uma média de 2.470 aguardam pela doação de um rim.
Tribuna da Bahia on line. 07.04.2008.