Presidente da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores diz que prefeitura não fez o dever de casa
O Rio se vê assolado por mais uma epidemia de dengue. Já foram dezenas de registros fatais, grande parte de crianças, além das milhares de pessoas infectadas. Os hospitais públicos, além de todos os problemas estruturais e carências diversas que, há anos, desenham seus perfis, se encontram superlotados por causa da doença e sem condições de atender toda a demanda.
Durante semanas, a população atingida pelo perigo da dengue assistiu à longa briga entre os governos municipal, estadual e federal que procuravam empurrar entre si as responsabilidades pela situação. Segundo o ex-chefe do serviço de emergência do Hospital Municipal Miguel Couto, na Zona Sul, coronel médico do Corpo de Bombeiros e atualmente vereador e presidente da Comissão de Higiene, Saúde Pública e Bem-Estar Social da Câmara de Vereadores, Carlos Eduardo de Mattos (PSB), é necessário parar a discussão e unir forças para a reversão do quadro.
"Temos que somar esforços e parar com esse lero-lero de um acusar o outro, porque todos são culpados. Uns mais, outros menos. Não posso deixar de ressaltar que a Prefeitura é a gestora plena do Sistema Único de Saúde (SUS). Cabe a ela o combate a vetores e às endemias. Certamente ela não fez o seu dever de casa", afirma. O episódio pelo qual o Rio atravessa é mais um que retrata a falta de comprometimento e responsabilidade das autoridades governamentais.
Enquanto o prefeito do Rio, Cesar Maia, aplica milhões de reais na Cidade da Música, na Zona Oeste, raríssimos são os postos de saúde abertos 24h. Isso em plena epidemia. "É lamentável que se gaste tanto dinheiro em coisas que poderiam esperar, enquanto temos uma necessidade premente, que é a saúde pública. Nós somos os campeões de tuberculose, de mortalidade por enfarte, de mortalidade materna, e agora campeões da dengue. E o prefeito se gaba de ter R$ 1,5 bilhão guardado, enquanto a população sofre as conseqüências do mau uso dos recursos", protesta o vereador.
TRIBUNA DA IMPRENSA - As autoridades governamentais tentam se eximir de suas responsabilidades, enquanto, em pleno século XXI, dezenas de pessoas ainda morrem da doença por falta de atendimento adequado e políticas públicas preventivas. Como o senhor analisa tal situação?
CARLOS EDUARDO - A dengue no Rio é a expressão microbiológica do desgoverno que reina na saúde pública, atualmente. A população não quer saber de quem é a responsabilidade. Se é municipal, estadual ou se é da União. Ela quer soluções. O combate à dengue deve ser feito com o bom uso da verba pública, que é "carimbada" para a aplicação em medidas contra a doença. Nós temos que otimizar tais recursos e realizar um planejamento de uso. Dengue se combate diariamente, de porta em porta, de casa em casa. Um mosquito, depois que eclode, dá conta de dois quarteirões e pode infectar mais de cem pessoas durante sua vida útil.
O inseto alado é de difícil controle, por isso a necessidade de se atuar durante a fase larvar do inseto, o que só é possível com agentes comunitários de saúde e agentes de endemia explicando e levando informações às comunidades, verificando e coibindo os focos. Mas o governo municipal tem deixado a desejar, já que abriu somente um concurso público na área. Hoje, o déficit de agentes é enorme. Tanto é que o Corpo de Bombeiros está sendo chamado para auxiliar nesse sentido. É também necessário intensificar as campanhas educacionais. Nós só as vemos na época de epidemias, o que não é eficaz. A porta já está arrombada, não adianta colocar cadeado. A taxa de infestação, aqui, é seis vezes maior do que a Organização Mundial de Saúde (OMS) aceita, que é de 1%. No Rio é de 6,3%. Alguns bairros chegam a ter 17 vezes mais esse nível de alerta, como é o caso do Méier (Zona Norte) e da Baixada de Jacarepaguá (Zona Oeste).
De que forma a Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores do Rio tem atuado para verificar o destino dado aos recursos federais para o combate ao mosquito? Houve desvio das verbas para outros fins?
A Câmara de Vereadores tem duas funções, legislar e fiscalizar. O vereador é um fiscal do orçamento, e dessa forma levantamos algumas irregularidades já acusadas pelo próprio Tribunal de Contas do Município (TCM), no ano de 2006. Entraremos com uma denúncia, no início da semana, no Ministério Público, tanto no âmbito estadual quanto no federal, solicitando abertura de inquérito civil público sobre o desvio de finalidade da verba pública federal, e que foi passada mês a mês para o combate à doença no referido período. Eram cerca de R$ 12 milhões e, segundo os estudos que realizamos, metade da verba foi destinada para o aluguel de ambulâncias e limpeza de hospitais, quando deveria ter sido usada exclusivamente no investimento e no custeio contra a dengue.
Na sua opinião, enquanto médico, quais as providências emergenciais devem ser tomadas para a reversão do quadro atual, com o registro diário de centenas de pessoas infectadas?
Volto a repetir, a porta já está arrombada. Temos que intensificar as campanhas, levar educação às comunidades, não deixar as equipes de hospitais desfalcadas. Existem hospitais de emergência, como é o caso do Hospital Miguel Couto, que no domingo fica um clínico geral de plantão. E ele é ao mesmo tempo clínico e chefe de equipe. As unidades hospitalares estão absolutamente desaparelhadas, sem recursos humanos, e entregues à própria sorte. E em um momento de epidemia, acredito que recomendável seria que o secretário municipal de Saúde fosse visitar os hospitais que ele administra, estivesse presente, que fosse o "general" da batalha enfrentada pela população e os profissionais de saúde.
As armas que nós temos para combater o mosquito da dengue devem ser utilizadas com o esforço de cada um, a começar pela própria Secretaria municipal de Saúde. Não podemos deixar hospitais sem médicos, enfermeiros, remédios ou aparelhos. Não podemos deixar também a população desinformada. A informação é tudo nessa hora. Não adianta esconder a sujeira embaixo do tapete. O cidadão carioca tem que saber o inimigo que está enfrentando. Cabe aos gestores informar, divulgar números, a doença, como se prevenir e onde se deve procurar auxílio médico. Não é admissível que uma criança, hoje, saia de uma unidade localizada em uma comunidade pobre, porque o posto de saúde fecha às 17h, e seja obrigada a buscar auxílio dezenas de quilômetros de distância.
Raríssimos são os postos municipais que funcionam 24h. Temos que somar esforços e parar com esse lero-lero de um acusar o outro, porque todos são culpados. Uns mais, outros menos. Não posso deixar de ressaltar que a Prefeitura é a gestora plena do Sistema Único de Saúde (SUS). Cabe a ela o combate a vetores e às endemias. Certamente ela não fez o seu dever de casa.
No início deste mês, o infectologista e professor da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Edmilson Migovski, alertou sobre a possibilidade de o número oficial de casos de dengue na cidade ser até 30 vezes maior do que o anunciado pelos órgãos de saúde. Segundo ele, apenas um em cada dez casos é notificado pelos médicos que fazem atendimento nas emergências dos hospitais, além do que nem todas as pessoas infectadas apresentam os sintomas da doença. Um médico de emergência que precisa atender 40 ou 50 pacientes em uma manhã, não consegue parar e notificar todos os casos. Ou atende, ou notifica. O senhor acredita em tais afirmativas?
Concordo em gênero, número e grau com o que o professor Migovski apontou. O número de subnotificações é muito maior do que os que chegam a ser registrados, certamente e sem medo de errar. A quantidade de doentes, hoje, é bem maior do que está sendo divulgado, assim como o número de mortos. Existem dificuldades no atendimento, nas notificações e na própria identificação da doença.
A epidemia de dengue no Rio não é novidade, já que em 2002 a cidade enfrentou uma situação semelhante. Faltou uma política preventiva, investimentos ou, de fato, a população teve sua parcela de culpa em toda a situação, conforme algumas autoridades afirmam?
Acusar a população é um deboche, uma piada. Acusar o clima é muito pior, pois existem municípios que têm condições climáticas bem parecidas com as do Rio e nos quais não está ocorrendo epidemia de dengue. Lembro ainda que o mosquito foi erradicado duas vezes, no século passado. Eu responsabilizo a má gestão governamental. É imperdoável deixar o programa de cobertura Saúde da Família não alcançar 5% do território. Não investir em agentes de endemia, no mínimo, é falta de respeito com as comunidades mais carentes. Você esquecer os postos de saúde, não aparelhá-los, não aumentar o seu horário de funcionamento é lastimável. Na Inglaterra, a saúde básica é tão importante que o inglês controla o êxodo dentro do país através do posto de saúde. Se uma família se muda de um bairro para outro é obrigada a se cadastrar no posto de saúde que corresponda a sua nova residência.
Ao mesmo tempo que a saúde pública sob a administração municipal encontra-se praticamente internada em um Centro de Terapia Intensiva à espera de salvação, o prefeito do Rio encontra viabilidade para aplicar cerca de R$ 500 milhões na Cidade da Música, na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade. A Comissão não tem meios de impedir que os recursos sejam tão mal aplicados? De que vai adiantar jovens tocarem flautas e harpas enquanto seus familiares morrem nas filas de hospitais?
O ordenador de despesas é a Prefeitura, nós somos fiscais e podemos denunciar. O papel do vereador é fiscalizar o orçamento. Enquanto a Cidade da Música é representativa de gastos milionários, um posto de saúde para se manter aberto 24h sairia ao poder público mais R$ 100 mil do que ele gasta atualmente. Basta fazer as contas. Quantos postos e por quantos anos eles poderiam atender a população diariamente sem fechar com todo o investimento aplicado na Cidade da Música? Poderíamos cobrir grande parte das demandas dos bolsões de pobreza e das áreas carentes que precisam de assistência médica.
Saúde é um dever do Estado e um direito do cidadão, está na Constituição. Mas não vemos o dever ser cumprido, muito menos o direito ser respeitado. É lamentável que se gaste tanto dinheiro em coisas que poderiam esperar, enquanto temos uma necessidade premente, que é a saúde pública. Nós somos os campeões de tuberculose, de mortalidade por enfarte, de mortalidade materna e, agora, campeões da dengue. E o prefeito se gaba de ter R$ 1,5 bilhão guardado, enquanto a população sofre as conseqüências do mau uso dos recursos.
Em muitos hospitais, determinadas especialidades são encontradas somente em dias específicos. Caso alguém da Baixada Fluminense, por exemplo, seja baleado no fim de semana, talvez tenha que ser removido para a Zona Sul, por carência de neurocirurgiões. Ano passado o senhor denunciou tal situação e a Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil alegou que o órgão não tinha conhecimento da precariedade. Não existe nenhum tipo de controle?
Nós temos carências em várias especialidades, com déficits de médicos ortopedistas, clínicos gerais e, principalmente, déficits de médicos neurocirurgiões e pediatras. O acesso aos últimos casos da dengue mostra que grande parte das mortes registradas foi de crianças. Não é difícil percebermos que o segmento que mais sofre é o infantil, e os governos deixam a desejar, principalmente o municipal, com a falta de pediatras nos hospitais. Falta a especialidade no Lourenço Jorge (Zona Oeste), no Paulino Werneck (Zona Norte), no Rocha Maia (Zona Sul). Faltam pediatras nas maternidades.
Agora se dizem que o vereador denuncia e eles não sabem, isso só atesta a incompetência. Eles são os gestores, os ordenadores de despesas e formuladores de políticas públicas, mas dizem que nada sabem (...). No início do meu mandato me acusaram de ser mentiroso, que eu inventava as situações, e que na verdade estava tudo bem. Aí fui obrigado a usar uma máquina fotográfica e documentar todas as denúncias e barbaridades que são encontradas em hospitais públicos e postos de saúde.
Os poderes negam e as respostas da assessoria de imprensa dos órgãos é sempre a mesma, "desconhecemos, isso acontece porque atendemos a todo mundo e não é verdade". São as três formas mais freqüentes de tentarem se justificar. Eu então denuncio ao Ministério Público com fatos, provas e circunstâncias. Estão lá, todos os relatórios documentados, fotografados e filmados dando publicidade à questão da saúde pública no Rio, que é gravíssima.
O senhor concorda que o médico da rede pública, não só no Rio, mas no Brasil de forma geral, tem que trabalhar com a criatividade e o improviso?
Os médicos da rede pública são verdadeiros heróis. Não digo isso no sentido de defender a classe por eu também ser médico. Ano passado nós denunciamos hospitais nos quais, por falta de recursos e aparelhagens adequadas, os médicos tinham que abrir cabeças com furadeiras artesanais. Nós encontramos em maternidades municipais, bebês e mães que saiam diretamente da sala de parto para o corredor, sem privacidade nenhuma, expostos a produtos de limpeza e a qualquer tipo de acidentes, enquanto que na mesma hora, em outra maternidade também de gerência municipal, haviam dezenas de leitos vagos. Isso é falta de dinheiro? É falta de gestão. Não existe uma central regulatória de vagas, exames e consultas. Precisamos saber onde, quantos e em quais especialidades são os leitos vagos.
Os médicos são obrigados a entubar pacientes para levar oxigênio aos seus pulmões em fio-guia enferrujado. Nós vimos colares cervicais improvisados com papelão. Vimos médicos fotografarem a tela do tomógrafo para poderem lembrar do exame no centro cirúrgico porque não havia impressão. Observamos radiologistas serem obrigados a darem laudos verbais ou escritos para as gestantes mas sem as provas das fotografias, pois o ultrassom não as emitia. Vimos grávidas gerarem seus filhos em escadas porque os elevadores que as levariam até as maternidades estavam quebrados há meses.
Pacientes internados no chão, gestantes comendo salsicha como única fonte de proteínas no Hospital Maternidade Alexandre Fleming (Zona Norte). Além disso, constatamos mulheres grávidas tendo trabalho de parto sentadas em cadeiras por falta de leitos, fora a presença de baratas, moscas, lixo espalhado no corredor. Enfim, só barbaridades.
Quais os principais passos tomados pela Comissão Municipal de Saúde este anos em prol da saúde pública e quais os seus limites?
O limite se dá a partir do momento que nós não somos executores, não temos a caneta na mão. Cabe à Comissão de Saúde a fiscalização, e nisso nos destacamos no Brasil inteiro. Não existe comissão de nenhuma Casa de leis que tenha fiscalizado tanto quanto nós nos últimos três anos. Fizemos centenas de diligências e denúncias, e permanecemos nessa guerra buscando minimizar o sofrimento da população nos hospitais. Depois de uma denúncia, sempre melhora um pouquinho. Parece que eles são movidos por denúncia. Mas percebemos que, muitas vezes, passa um tempo, e volta tudo à estaca zero. Mas não vamos desanimar. Estamos "enxugando gelo", porém firmes, diariamente, colocando o mandato, e eu especificamente, a minha medicina à disposição do cidadão.
Existe algum tipo de trabalho desenvolvido, atualmente, em conjunto com a Comissão de Saúde da Assembléia Legislativa do Rio (Alerj)?
Não. Entretanto, estamos abertos para, caso a comissão da Alerj queira, trabalhar em parceria. Ajuda é sempre bom, e nós não deixaríamos de aceitá-la. Mas, na verdade, estamos, desde o início do mandato, muito sozinhos (...) é a briga de David contra Golias. Essa é a expressão que eu posso usar no momento. Auxílio todo mundo precisa, mas também se não vier, eu vou continuar.
Fonte: Tribuna da Imprensa