Por: Carlos Chagas
BRASÍLIA - De quando em quando vale deixar as primeiras filas da sala do cinema, de onde vemos com perfeição os detalhes dos pedaços da tela dispostos à nossa frente para, lá nas últimas filas, conseguirmos uma visão de conjunto. A mais recente pesquisa da CNT-Sensus presta-se a essa observação. O presidente Lula alcançou 68% de popularidade, e o governo, 52% de aceitação, como ótimo ou bom.
Enquanto isso, vai explodindo o escândalo mais recente, dos cartões de crédito corporativos, com 11.510 funcionários grandes e pequenos do Executivo autorizados a praticar qualquer tipo de despesas em seu favor pessoal ou para benefício dos interesses daqueles a que servem, com ênfase para familiares até do presidente da República. Deste e do antecessor. Uma lambança digna dos capítulos anteriores, dos sanguessugas que superfaturavam ambulâncias para municípios e da ação da quadrilha com cabeça no Palácio do Planalto e nas altas esferas do PT, criando o mensalão para comprar o voto de deputados.
Só isso? Nem pensar. A disputa por diretorias de empresas estatais, entre os partidos políticos, conduz ao raciocínio linear de que autorizar bilhões de despesas com obras públicas, para empreiteiras, e dispor do poder de liberar essas quantias, revela a prática do recolhimento de vultosas comissões para os privilegiados dirigentes e seus padrinhos.
Não foi sequer o PC Farias que inventou essas operações, dirão os acomodados, acrescentando vir essa roubalheira dos tempos do Império. Tem razão, mas é bom registrar que as operações sofisticaram-se tanto a ponto de obstar a ação da polícia e da Justiça.
A coisa pública foi transformada em coisa privada, como se fosse normal para aquele que puder, funcionário público ou empresário, cidadão comum ou desempregado, meter a mão e locupletar-se do erário e do próximo. E nem falamos, até agora, da vergonha que tem sido o aparecimento de milhares de ONGs fajutas, de fancaria, criadas à sombra do partido do governo e adjacências, sustentadas por dinheiro público, sem prestar contas de seus gastos. São bilhões, todos os anos, fluindo para o bolso de falsos benfeitores da sociedade, ainda que existam ONGs sérias e de relevantes serviços prestados.
O que espanta e assusta é o fato de que o povo continue dando seu aval a governantes que, no mínimo, toleram esse pantanal, quando não o estimulam ou dele não se beneficiam. Não se trata de denegrir os "companheiros", pela primeira vez no poder, que apenas confirmam aquele mote popular de que quem nunca comeu melado costuma lambuzar-se. Antes deles foram os tucanos, atrás vinham peemedebistas. A registrar emerge o fato de que a corrupção transformou-se em regra geral. Quem pode, aproveita, com o beneplácito da sociedade.
Pode ser simples a explicação: de tanto ver vitoriosa a roubalheira, a maioria passou a admirá-la e praticá-la. Como num sistema de vasos comunicantes, a corrupção estendeu-se a todas as camadas sociais. Quem contratou um pintor de paredes sabe que, com as exceções de sempre, o profissional vai misturar água na tinta para dali a pouco tempo seus serviços venham a ser novamente exigidos. Um cidadão que leva o carro a uma oficina mecânica, grande ou pequena, pode ter a certeza de que o defeito foi sanado, mas um gatilho instalou-se em outra parte do motor, de modo a precisar voltar mais ou menos como funcionaria o moto-perpétuo, se existisse.
O exemplo vem de cima, das exorbitantes taxas bancárias que levam a atividade a faturamentos jamais vistos, até os produtores de gêneros de primeira necessidade, como o leite, servido com soda cáustica. Ou os remédios, obra-prima de laboratórios que fariam a felicidade do Al Capone, se ele tivesse tido a idéia de controlá-los. Se puder, o produtor rouba no peso e nas especificações do pacote de feijão, assim como o usuário de um telefone fixo ou celular se verá envolvido por sedutoras promessas de prêmios miraculosos, caso admita mais um adendo em sua conta mensal.
É claro que tudo acontece pela falência do poder público, incapaz de obstar tanta bandidagem, seja por incapacidade, seja por estarem seus agentes atolados até o pescoço na flexibilização de seus deveres.
Torna-se necessário descer mais a fundo nesse poço infinito. Qual a causa de tanta corrupção? A impunidade, para começar. Se os outros podem, porque não poderá o cidadão comum, se em vez de punido, o corrupto é exaltado e seguido como um vencedor?
O modelo repousa na origem. Substituiu-se a ética pela livre competição. Vale tudo para afastar o colega do lado, o vizinho de porta ou o companheiro de jornada, mesmo mantidas certas normas corporativas, que apenas fazem confirmar o princípio maior. Para os céticos, a Humanidade sempre funcionou assim, em graus diferentes.
Convenhamos, porém, estar o Brasil outra vez dando lições para o mundo. Mudar o próprio, quer dizer, o mundo, nem Jesus Cristo, aliás, de uns tempos para cá servindo para justificar novos tipos de roubalheira. Ou não vemos montes de "bispos" virarem milionários através de promessas que misturam doações com a vida eterna?
Saída não há, para essa trágica fase em que nos encontramos. Nem PT, nem PSDB, muito menos PMDB ou outras siglas que nos assolam. São manifestações periféricas de algo bem mais profundo, já que não prosperariam se não houvesse campo fértil.
Falta-nos uma corporação, uma categoria social ainda não contaminada, pois todas se viram dominadas pela corrupção ou pela impotência. Chamar os militares de novo, para repetirem a ditadura? Felizmente não dá mais. Apelar para as igrejas, a Católica envolta no retrógrado conservadorismo dos novos tempos de Bento XVI? As evangélicas, acima referidas como as modernas cavernas do Ali Babá e do Ali Babão?
Acreditar no Ministério Público pleno de jovens idealistas que com o tempo vão aderindo ao sistema? Vale o mesmo para a Justiça. A Polícia Federal, que dia a dia parece amalgamar-se mais aos adversários que deveria combater? Dos partidos políticos não haverá que repetir outra vez estarem servindo de trampolim para a falência generalizada. O Congresso, coitado?
As centrais sindicais desapareceram, o MST constitui-se no portal da violência inconseqüente, assim como as elites empresariais puxam a fila do que de pior acontece no País. A imprensa, mero apêndice das decisões do poder econômico? Também não dá para a inteligência da universidade, com reitores capazes de locupletar-se no barro que só se forma pela anuência dos professores. Sequer os artistas seriam capazes de constituir uma força unida, tanto faz se escritores, poetas, pintores, atores e escultores, todos empenhados na deletéria competição que os divide entre realizados e fracassados.
Quem quiser que responda, mas, em termos de instituições nacionais em condições de virar o jogo, só mesmo as torcidas do Flamengo e do Corinthians. Mas o que fariam depois de deixarem a emoção dos estádios?
Fonte: Tribuna da Imprensa