Mais coerente e desabrido do que seus pares, Ruy Mesquita disse que a Revolução Cubana foi a maior tragédia política do século passado. Trata-se de um ponto de vista que os senhores da mídia nativa certamente compartilham, embora menos claros e peremptórios do que Mesquita. Na minha opinião, a maior tragédia política do século passado para o Brasil foi o golpe de 1964, com todas as conseqüências e desdobramentos, pelos quais pagamos até hoje. Deste ângulo, a presença de Fidel Castro no cenário latino-americano teve importância notável. A decisiva contribuição do governo dos Estados Unidos e dos seus instrumentos de agressão, dos mais subdolosos aos mais ostensivos, ao golpe perpetrado pelos gendarmes da elite brasileira poderia ter outra dimensão caso não se percebesse na linha do horizonte a ilha de Fidel. Algo assim como a montanha nevoenta que surge aos olhos de Ulisses, o Odisseu, ao cabo de sua última viagem, que Dante cantou em lugar de Homero. Está claro que os privilegiados da minoria branca dificilmente aceitariam uma modernização do País gerada naturalmente pela industrialização crescente. Já durante o governo de Juscelino começara a desenhar-se a chance de uma vida política e social contemporânea do mundo, de sorte a exprimir forças de esquerda determinantes tanto no Parlamento quanto nos sindicatos. E, após a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, o governo de João Goulart confirmaria a tendência. Se a sombra da montanha nevoenta não se alongasse sobre o subcontinente, os donos do poder brasileiro teriam o mesmo apoio dos Estados Unidos na tentativa de sustar o processo? O embaixador Lincoln Gordon teria o papel que enfim lhe coube? Trata-se de questões acadêmicas, obviamente. Certo é que Fidel e sua revolução têm grande influência neste enredo recente, desde o golpe até a resistência armada. Vivemos em outro mundo, conquanto tenha decorrido apenas meio século. E Fidel abandona oficialmente seu posto de ditador vitalício antes que a vida acabe. Nos bastidores será ainda a voz mais alta. De Hitler a Stalin, de Mussolini a Mao, de Franco a Fidel, todos eles, e outros mais, poderiam dizer “o Estado sou eu”. Como Luís XIV. Mesmo ditaduras nascidas de revoluções populares e orientadas à esquerda tornam-se de certa forma de direita, pela economia dirigida pela burocracia estatal e a repressão feroz das idéias e dos espíritos contrários. A ditadura verde-amarela, invocada em bloco pelos senhores da mídia nativa, os mesmos que já a chamaram de revolução e hoje falam impunemente, tartufescamente, de “anos de chumbo”, nasceu à direita e ali ficou, sem renunciar a qualquer uma das armas usadas pelas demais. Foi, de todo modo, medíocre nos conteúdos e daninha nos resultados, ao contrário de Fidel, personagem histórica imponente, uma das maiores do século passado. Ele vaticinou que a história o julgaria. Creio que a história não deixará de vê-lo como herói de uma revolução popular e como líder carismático capaz de desafiar o império nas barbas do próprio, 49 anos a fio. Nesta edição, conta-se a renúncia de Fidel e sua personalidade é analisada de perspectivas diversas. Inegável é que o mundo perde um protagonista. Tudo, no entanto, tem seu tempo certo. Como agudamente ensina o professor José Jobson de Andrade Arruda ao longo da entrevista que começa na página 34, o imperialismo enfrentado por Fidel, e às vezes até humilhado, está no ocaso diante de outro, o econômico-financeiro. Os interesses e as vontades das grandes corporações dão para eclipsar o poder dos Estados nacionais. Vivemos o tempo turvo do Deus Mercado.
Fonte: Carta Capital