Os governantes passam, as piores práticas resistem nos porões, ou salas, das delegacias policiais Brasil afora. O drama do ajudante de cozinha Fernando Antõnio da Silva, relatado ontem pelo Jornal do Brasil, comprova como a tortura ainda sobrevive como forma de pressionar acusados a confessarem crimes que, nem sempre, praticaram.
Ao contar a história de Fernando, os repórteres Felipe Sáles e Marcos Eduardo Neves confrontaram relatos da Justiça, laudos do Instituto Médico Legal, justificativas dos agentes da Divisão Anti-Seqüestro e a defesa do acusado que passou oito meses e cinco dias preso até ser inocentado.
Suspeito de participação no seqüestro de uma prima de sua mulher, Fernando foi vítima de uma extensa relação de excessos e crimes listados nos processos judiciais: ilegalidade na condução e prisão do réu, espancamento, tortura. Teve vedado o contato pessoal e reservado com os advogados, sofreu coação policial. Houve ainda fraude a ofício da Justiça e falso testemunho prestado em juízo.
Os responsáveis por tantas arbitrariedades continuam na ativa: o delegado da DAS Marcelo Martins, os inspetores Vitor Pereira Júnior e Darcy Ramiro da Cruz Clotz. Sintomaticamente, nem a Secretaria de Segurança Pública, nem o comando da Polícia Civil quiseram se pronunciar.
O ajudante de cozinha tenta retomar a vida, mas clama, na Justiça, o ressarcimento das perdas físicas e morais. Levou chutes, pauladas e choques elétricos nas nádegas e no pênis. Os policiais do século 21 aplicaram em Fernando Antônio as táticas herdadas dos militares nos piores anos da ditadura que manchou a história republicana do Brasil entre os anos 60 e 80 do século passado. As nódoas enlameiam o futuro.
A tal ponto que, "alarmada" com a violência e a impunidade policial no Brasil, a Organização das Nações Unidas enviou ao país o relator para Execuções Extra-Judiciais Philip Alston. Ele desembarcou sexta-feira e, por 11 dias, percorrerá São Paulo, Rio, Pernambuco e Distrito Federal para apurar acusações de assassinatos, torturas, violência e diversos crimes envolvendo autoridades policiais.
A delicada missão acendeu o alerta no governo Lula e nos Estados envolvidos na investigação. De origem australiana, o relator da ONU tem a missão de avaliar até que ponto o sistema judicial brasileiro é capaz de evitar os excessos e mortes cometidos pelos agentes encarregados da segurança pública ou por milicianos. Vai se reunir com representantes das Forças Armadas e do Supremo Tribunal Federal.
Irá ouvir funcionários de prisões e delegacias, representantes das polícias Militar e Civil, governadores, parlamentares, parentes e vítimas de violência. E é justamente entre os últimos que reside a preocupação do governo Lula. Há três anos, uma das testemunhas ouvidas pela relatora da ONU Jina Jilani foi assassinada depois do encontro.
A presença do emissário das Nações Unidas e o registro dos excessos que marcaram o corpo de Fernando Antônio são uma demonstração de que o Brasil ainda tem muito a caminhar para superar as marcas do passado. E um longo trabalho à frente para reformar as forças de segurança pública e conter os avanços não apenas dos criminosos, mas também dos agentes que deveriam atestar a idoneidade das polícias.
Fonte: JB Online