As prerrogativas militares[1] e a fragilidade do Ministério da Defesa brasileiro
I. Introdução
Quando um país passa por um processo de redemocratização, uma das primeiras medidas a ser tomada é a desmilitarização do seu aparato de segurança. O objetivo é tornar nítida a separação das funções militares e civis: a polícia é responsável pela ordem interna, enquanto os militares se encarregam dos problemas externos. A Constituição de 1988 manteve inalterada a prerrogativa militar de intervir em assuntos internos (Zaverucha, 1998).
Ponto importante para a efetividade da democracia[2] é o que diz respeito a segurança dos indivíduos. A segurança é direito civil e social e consta nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988. Em seu artigo 144 temos disponibilizado o seu ordenamento. A estrutura de Segurança Pública brasileira, que deveria ser de natureza civil e com fins de defender os interesses dos cidadãos brasileiros em quaisquer circunstâncias, se preocupa mais com a defesa dos interesses do Estado que da cidadania, onde o processo de militarização dessas instituições é a prova do hiperdimensionamento do Estado em relação aos cidadãos[3].
Neste artigo discuto a questão da interferência militar em assuntos de Segurança Pública baseado na teoria democrática contemporânea de caráter minimalista, não submínima (Mainwaring et alii, 2001). Observo que atores políticos não eleitos influenciam de forma decisiva nesse quesito. Tais atores políticos formados por militares[4]. Encontramos ingerências dos militares na segurança pública e isso fere os princípios básicos da democracia, pois são atores não eleitos que planejam, gerem e estruturam instituições de segurança nos lugares de atores civis, estes de indicação dos representantes eleitos pelo povo. A Instituição aqui destacada para tal interpretação é o Ministério da Defesa, mas a Constituição de 1988 traz características importantes desse domínio reservado.
II. Os Militares e a Constituição de 1988
Na Constituição Federal de 1988, as cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, policiais militares estaduais, sistema judiciário militar e de segurança pública em geral, permaneceu praticamente idêntica à Constituição autoritária de 1967/69. As Forças Armadas tiveram papel de grande importância na manutenção de suas prerrogativas, pois nomearam 13 oficiais superiores que fizeram lobby pelos seus interesses no período de redação daquela carta (Zaverucha, 1998).
Eram oito às comissões de trabalho responsáveis pela elaboração da Carta Constitucional. A Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições, presidida pelo então senador Jarbas Passarinho – o mesmo que participou do AI-5, em 1968, que fechou o Congresso Nacional - ficou encarregada dos capítulos ligados às Forças Armadas e à Segurança Pública (Zaverucha, 2005; p.60).
O deputado Ricardo Fiúza ficou responsável pela subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Apoiou firmemente as demandas militares nos debates constitucionais, chegando a rejeitar a tentativa de alguns congressistas de criar o Ministério da Defesa, bem como trabalhar, também, contra a tentativa de se dar fim ao controle do Exército sobre as Policias Militares Estaduais. Optou por favorecer a autonomia das Forças Armadas mantendo o controle parcial do Exército sobre as PMs, alegando para isso, que o governo necessitaria de todas as suas forças para controlar contestadores da ordem social[5] (Zaverucha, 2005; pp.60-61).
O resultado disso foi uma constituição com fortes prerrogativas para os militares, configuradas no caráter ambíguo da carta magna. Artigos liberais de um lado e de outro, artigos com forte inclinação à ingerência militar[6]. Analisando o artigo 142, percebe-se isso de forma bastante dimensionada: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (Constituição Federal de 1988). Como garantidores da lei e da ordem internas, a qualquer momento esse ator político (Forças Armadas) pode interferir em assuntos de segurança interna que, em democracias plenas, jamais existiria. Tal prerrogativa aparece como sendo de alta intensidade, pois a constituição encarrega os militares de responsabilidade principal na garantia da lei e da ordem interna, outorgando-lhes uma grande margem de decisão que lhes permitem determinar quando e como devem cumprir com suas obrigações (Stepan, 1988; p. 525).
Lei e ordem podem ter várias conotações, a interpretação da ordem interna por parte dos militares pode estar permeada por uma série de estímulos ideológicos. A garantia dessa ordem, ou dos poderes constitucionais, quando da solicitação de qualquer um dos três poderes (Executivo, Legislativo ou Judiciário) da República, pode não ser levada em consideração por parte dos militares. Se os três poderes não acharem conveniente ou necessária a intervenção dos militares para manter a ordem interna, mas estes, baseados na constituição – que lhe dá poderes de garantidores da lei e da ordem interna –, acharem que devem intervir, a tendência a prevalecer a força é muito grande (Zaverucha, 1998; p. 128). Por conseguinte, a autoridade suprema do presidente da República perante os militares pode ter efeito nulo, sobretudo quando estiver fraco politicamente. O artigo 142, também não especifica que tipo de lei é a que está inserida nele, se de ordem constitucional ou ordinária, e a ordem também não está especificada, se tem caráter social, político ou moral. Este artigo é muito vulnerável, fazendo com que uma intervenção militar em assuntos internos possa ocorrer ao bel prazer dos militares.
Depois do incidente provocado pela intervenção militar, solicitada por um juiz do terceiro Distrito de Volta Redonda[7], na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que resultou na morte de três operários da empresa, o Congresso Nacional aprovou, em 23 de julho de 1991, uma lei complementar, de número 69, que veio restabelecer a cláusula constitucional de 1967/69. Esta concedia apenas ao Executivo federal o direito de pedir a intervenção militar interna. O artigo 142 nivela os três poderes e não especifica nenhuma hierarquia dentro deles ou entre eles. “Na primeira versão do artigo 142 os militares perderam o papel de guardiões da lei e da ordem. O ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves, ameaçou zerar todo o processo de redação constitucional. Temerosos, os constituintes acharam por bem ceder e o papel de garantidores da lei e da ordem voltou a aparecer na nova versão do referido artigo. Para que tal capitulação ficasse dourada, o Congresso optou por conceder tanto ao Judiciário quanto ao Legislativo o direito de pedir a intervenção das Forças Armadas em assuntos domésticos. Ao não especificar que instância do Judiciário poderia convocar os militares, a Constituição nivelou os poderes do Supremo Tribunal Federal ao de um juiz iniciante em uma pequena cidade. Do mesmo modo, equiparou o presidente do Congresso a um parlamentar em seu primeiro mandato” (Zaverucha, 1998; pp. 128-129). Ou seja, a lei complementar nº 69, ao invés de inferir maior controle civil sobre os militares, deu maiores prerrogativas aos mesmos, pois retomou sua essência do período de exceção, concentrando as decisões no Poder Executivo. Com um presidente nas mãos dos castrenses, a intervenção militar em assuntos políticos fica mais fácil de ocorrer.
III. O Ministério da Defesa[8]: Esfera Civil ou Militar?
O Ministério da Defesa (MD) surge como um ponto importante nas relações civil-militares. Segundo Oliveira e Soares (2000), o MD foi criado na tentativa de colocar os assuntos militares sobre influência e controle dos civis. Depois de um longo processo de análise, que durou todo o primeiro mandato de FHC, em julho de 1999, foi criado o MD, após um período de cinco meses em caráter extraordinário – onde conviveu com os demais ministérios militares, os quais foram extintos posteriormente. A criação do MD deu-se por medida provisória, com a participação do Congresso sendo praticamente inexistente. A participação da comunidade acadêmica foi irrisória (Oliveira e Soares, 2000). No processo de construção de tal ministério a atuação dos militares, com sua representação no EMFA (Estado Maior das Forças Armadas) foi decisiva e sua estrutura se mostra, ainda hoje, bem militarizada. Os ministros civis que “comandam” o MD são ofuscados por vontades de generais (alguns deles da reserva) que realmente mandam, mantendo poder reservado dentro de um poder da República.
Nos EUA a posição institucional do Ministro da Defesa é fortalecida[9]. No Brasil, aquele modelo foi criticado pelos militares, que alegaram peculiaridades tais, que seria impossível suprir o modelo estadunidense. O ministro da defesa se dirige diretamente aos comandantes de cada força, já que o Ministério da Defesa não possui um Estado-Maior Geral forte que comande a Marinha, o Exército e a Aeronáutica. Este Estado-Maior Geral, denominado no Brasil de Estado-Maior da Defesa, tem função de assessoria e segue uma especificidade militar. O ministro da defesa termina não participando do processo de ordenança das operações. Já no modelo dos EUA, o secretário de defesa controla pessoalmente os comandos (Lopes, 2001).
No que tange a criação do MD, neste não houve nenhuma intenção de efetivar algum tipo de controle civil sobre os militares. Na verdade, o que existiram foram interesses externos da política brasileira. “Desde 1995, quando FHC anunciou seu propósito de criar o Ministério da Defesa, o plano vinha sendo tocado lentamente. De repente, os EUA anunciaram que a Argentina seria seu sócio extra-OTAN. Logo a seguir, o então presidente Menem declarou, em 17 de agosto de 1997, que o lugar dos países latino-americanos no Conselho de Segurança da ONU deveria ser rotativo, e não fixo para o Brasil, como desejava a diplomacia verde-amarela (Zaverucha, 2000). De pronto FHC reagiu. Durante a reunião do Grupo do Rio em Assunção, em 24 de agosto de 1997, ele anunciou a criação do Ministério da Defesa. Foi uma manobra política para favorecer a candidatura do Brasil a um assento no Conselho de Segurança da ONU, já que seria difícil explicar ao mundo como um país com vaga neste Conselho aspira decidir sobre questões de segurança internacional tendo quatro ministros militares respondendo pela defesa. Afora isto, FHC também quis acabar com a figura de ministros militares por ter um projeto de implantação do parlamentarismo. Ficaria muito estranho se, numa queda de gabinete, todos os ministros caíssem com exceção dos militares” (Zaverucha, 2003; p. 406).
Partindo dessa última perspectiva, percebe-se que o MD nasceu com “falhas genéticas” sérias. Criado para subjugar os militares ao jogo político democrático, ou seja, controle efetivo civil sobre os militares, o MD teve, na verdade, fins instrumentais. O próprio relator do projeto de criação do dito ministério, Benito Gama, afirmou que o novo ministro seria uma espécie de “rainha da Inglaterra”. Além da fragilidade instrumental do ministro da defesa este também passaria por fragilização institucional, que os comandantes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica só deixariam de ser politicamente ministros de Estado, não perdendo o seu status jurídico (Zaverucha, 2003).
Os comandantes militares são membros do Conselho de Defesa Nacional. O ministro da Defesa tem de levá-los a cada reunião desse conselho. Os comandantes militares são aqueles que de fato detêm o poder, o ministro da defesa, civil[10], é um mero despachante das Forças Armadas perante o Presidente da República e o Congresso[11]. Os militares, também são responsáveis, juntamente com o ministro da Defesa, pela indicação de oficiais-generais ao presidente da República (Zaverucha, 2003). Desde 1985 os presidentes da República acataram integralmente os nomes propostos pela cúpula militar para promoção.
No processo de indicação do primeiro ministro da defesa, ficou claro como a interferência verde oliva é cabal. FHC quis indicar um diplomata, Ronaldo Sardemberg, para o MD. Mas, como o Itamaraty tem uma rivalidade histórica com as Forças Armadas, o Presidente cedeu às pressões castrenses e escolheu o ex-líder do governo no Senado, Senador Élcio Álvares, que tinha sido derrotado nas eleições de seu estado, o Espírito Santo. Álvares assumiu na qualidade de ministro extraordinário da defesa. Interessante notar que, em seis meses, o Brasil conviveu com cinco ministérios na área da defesa: o MD, a Marinha, o Exército, a Aeronáutica e o EMFA. Álvares ficou numa situação incômoda, pois despachava numa salinha no quarto andar do prédio do EMFA, sendo depois transferido para uma outra sala, também de pequenas dimensões. O ex-senador só veio ocupar o gabinete do ministro-chefe do Estado Maior das Forças Armadas quando foi publicada no Diário Oficial sua nomeação como ministro efetivo da Defesa. Quando assinava documento oficial tinha de pedir a assinatura de seus subordinados, i.e., os comandos militares.
Seus sucessores permaneceram como sendo figuras “ilustrativas”. Depois da saída indecorosa de Álvares – acusado de envolvimento com o narcotráfico[12] -, que gerou ato de indisciplina militar por parte do Brigadeiro Brauer, forçando-o a declarar publicamente seu repúdio para com o ministro (Martins, 1999), assumiu Geraldo Quintão, que até então era o Advogado Geral da União.
Quintão assumiu logo anunciando ações que agradaram em cheio os militares: estudo para aumento de soldos; incremento de verbas para a modernização das três forças, e defesa de um sistema previdenciário diferenciado do civil (Azeredo, 2000).
Tais promessas não foram cumpridas, gerando insatisfação entre os militares. Para complicar ainda mais a situação dos civis, FHC, resolveu demitir o comandante do Exército, general Gleuber Vieira, que tinha feito uma declaração criticando a falta de verbas. A crise se instalou, os castrenses se reuniram em Brasília para ato de desagravo, diga-se, sem a presença do Ministro da Defesa. FHC cedeu à pressão verde-oliva e voltou atrás na demissão do comandante do Exército, o general Gleuber Vieira. Os militares ainda pressionaram para que fosse editado uma Medida Provisória concedendo reajuste salarial, no que foram prontamente atendidos. Quintão permaneceu no cargo numa posição discreta, procurando não criar atritos com os militares.
Diferentemente de FHC, Lula conseguiu colocar no MD um diplomata, José Viegas. Apesar da aprovação do nome do diplomata para a cadeira do MD pelos comandos das Forças Armadas, isso não quis dizer que Viegas não teria o mesmo papel de seus antecessores, ou seja, ser uma figura ilustrativa, uma “rainha da Inglaterra”. Mas, Viegas não levou a sério às regras do jogo no MD. Tomou medidas que desagradaram as três forças, sobretudo o comandante do Exército, Francisco de Albuquerque.
Viegas criticou a falta de empenho do Exército, ao contrário das outras forças, na busca de corpos de desaparecidos políticos nos conflitos da Guerrilha do Araguaia, comportou-se como membro do governo entrando em choque com os quartéis ao aceitar a decisão da área econômica em não dar aumento salarial aos militares, solicitando, também, que os militares não fizessem declarações públicas em favor de aumentos salariais.
A “quebra-de-braço” entre o ministro e o comando do Exército se tornou bastante clara no caso da nota que o general Francisco de Albuquerque direcionou a imprensa sobre o caso das supostas fotos de Vladimir Herzog sendo torturado nos porões da ditadura, publicadas no Correio Brasiliense[13]. Tal nota foi considerada ofensiva pelo presidente Lula. Ela afirmava que o Exército não tinha mudado suas convicções sobre o acontecido no período da ditadura.
O Exército falou em nome do MD, sem consentimento das outras forças e, muito menos, do ministro da defesa, Viegas. Este exigiu retratação do comandante do Exército general Francisco de Albuquerque, no qual redigiu uma nova nota que, substancialmente, não mudava em quase nada a essência da nota anterior. No final das querelas, Viegas saiu do comando do MD.
Assumiu a pasta da Defesa o vice-presidente, José Alencar[14]. Este não poderia ser demitido, pois, num eventual impedimento do presidente Lula, ele seria o comandante-em-chefe das Forças Armadas. José Alencar entregou o cargo em outubro de 2006 para disputar as eleições. O atual ministro é Waldir Pires. Este está envolvido num dos maiores problemas enfrentados pelo MD na Nova República, a questão dos controladores de vôos. O ministro parece não conseguir dirimir este sério problema e, pior, não esclarece aos cidadãos quais são os verdadeiros problemas que estão infringindo o espaço aéreo brasileiro, pois parece não estar a par do que acontece nos CINDACTAs (Centros Integrados de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo), estes que estão sob controle da Aeronáutica. O pacto da transição permanece, os militares aceitam uma democracia política em troca da manutenção de enclaves autoritários dentro do aparato do Estado[15].
O controle institucional do orçamento das Forças Armadas pelo Congresso Nacional é meramente contábil. Sem maiores esclarecimentos das estratégias previamente definidas. O MD não tem a menor intenção de mudar esta realidade. “Não basta um representante da vontade presidencial exercendo o cargo de ministro para configurar a direção política, mas a presença decisiva de civis no cerne da formulação e implantação dos rumos da defesa e das questões militares” (Oliveira e Soares, 2000).
Partindo do papel institucional do MD para a questão da coordenação do setor de defesa da nação, têm-se observado que o controle civil se mostra frágil. Com os defeitos genéticos do MD relatados aqui, a coordenação do setor de defesa, ou segurança pública estatal, se mostra bastante militarizada.
Stepan (1988) coloca que, para que a prerrogativa militar – coordenação do setor de defesa – tenha baixa intensidade de jure e de facto a coordenação desse setor tem de ser realizada por uma autoridade no quadro ministerial (em geral, um civil indicado pelo Executivo federal) que controle uma equipe, em grande parte constituída por funcionários civis nomeados. Para Stepan (1988) a prerrogativa militar terá alta intensidade se tal coordenação for realizada, de jure e de facto, pelos comandos das três forças armadas militares, atuando de modo separado, sob a fiscalização muito frágil do EMFA e contando com frágil participação do Executivo federal (Stepan, 1988; p. 526).
Sabe-se que o setor de defesa, ou Defesa Nacional, é atividade do Ministério da Defesa em países efetivamente democráticos. Que o MD é responsável pelo planejamento e execução dos assuntos voltados para a Defesa da Nação, onde as Forças Armadas tem papel de destaque nessa garantia. Cabe aos civis executar as atividades de coordenação e de elaboração dos planejamentos de defesa, bem como administrar o orçamento de defesa com total independência. O que ocorre no Brasil é justamente o predomínio das Forças Armadas em todos estes requisitos, dando uma conotação de que há prerrogativas militares em alta intensidade (Stepan, 1988).
O MD aparece, a primeira vista, como um grande avanço para a consolidação da democracia no Brasil, mas, na verdade esconde, nos bastidores, a verdadeira ação em seu bojo, ou seja, o domínio dos castrenses como força política no planejamento, gestão e execução das atividades de Defesa. Tem-se um domínio de jure de um ministro fraco politicamente, mas de facto o que se verifica é a autonomia dos comandos militares (Exército, Aeronáutica e Marinha) na direção do MD.
IV. Conclusão
O processo de militarização da Segurança Pública no Brasil pode ser colocado como uma variável explicativa relevante para a não consolidação da democracia no Brasil. Foram destacados aqui alguns pontos desse processo de militarização que, mesmo depois de termos redemocratizado o país, em moldes procedurais submínimos (Nóbrega Jr., 2005), a questão da segurança interna permanece de forma bastante acentuada nas mãos dos militares. Isso gera falta de controle civil sobre os militares, atributo imprescindível para a consolidação da democracia, além de sérias limitações em defender os direitos dos cidadãos.
Em democracias sólidas além das eleições – livres, limpas, competitivas, periódicas e pluripartidárias – e direitos políticos para a maioria adulta da população é imprescindível à garantia dos direitos civis e o efetivo controle das instituições da res pública por atores políticos eleitos pelo povo. O caso da militarização da segurança pública é um claro exemplo de ator político não eleito infligindo em assuntos da esfera política civil. Os militares no Brasil mantiveram suas prerrogativas em muitos assuntos do Estado brasileiro. Na verdade saíram do governo, mas não do poder.
O que exemplifica de forma mais eloqüente o domínio reservado das Forças Armadas em atividade civil é o seu papel no Ministério da Defesa. Órgão vinculado ao Poder Executivo, que deveria estar imbuído na defesa dos interesses civis, mostra-se como uma instituição estranha ao corpo da esfera civil. Na verdade, as prerrogativas dos comandos, principalmente o Exército, prevalecem e o ministro dessa pasta é um mero despachante dos interesses castrenses, uma espécie de “rainha da Inglaterra”, pois “reina”, mas não governa de fato.
O que prevalece na Segurança da nossa Res Pública é uma estrutura militarizada, herança do período autoritário, que não avança para uma outra estrutura comandada de forma eficiente por civis capacitados e direcionados para uma realidade de Estado de Direito Democrático. Dessa forma não avançamos como regime democrático, ficando para trás na História.
__________
[1] “Referem-se àquelas áreas onde, desafiados ou não, os militares, como instituição, assumem ter adquirido o direito ou privilégio, formal ou informal, de governar tais áreas, de ter um papel em áreas extra-militares dentro do aparato do Estado, ou até mesmo de estruturar o relacionamento entre o Estado e a sociedade política ou civil” (Stepan, 1988; p. 93).
[2] A definição de democracia aqui colocada está baseada em critérios mínimos, mas não submínimos (Nóbrega Jr., 2005; Mainwaring et alii, 2001). Tais critérios seriam 1) eleições livres, limpas, periódicas, pluripartidárias, 2) com direitos políticos para a maioria adulta da população, onde 3) os direitos civis são contemplados para todos conforme o modelo liberal de igualdade perante as leis e 4) com um efetivo controle das instituições políticas/públicas nas mãos dos civis eleitos pelo povo, sem que estes sejam impedidos nos bastidores por outros atores políticos não eleitos como, por exemplo, os militares.
[3] “A Constituição de 1988 cometeu o erro de reunir em um mesmo Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições), três capítulos: o Capítulo I (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio), o Capítulo II (Das Forças Armadas) e o Capítulo III (Da Segurança Pública). Nossos constituintes não conseguiram se desprender do regime autoritário recém-findo, e terminaram por constitucionalizar a atuação de organizações militares em atividades de polícia (Polícia Militar) e defesa civil (Corpo de Bombeiros), ao lado das polícias civis. As policias continuaram constitucionalmente, mesmo em menor grau, a defender mais o Estado que o cidadão” (Zaverucha, 2005; pp. 72-73).
[4] As Forças Armadas em democracias têm função de segurança da Nação, ou seja, em questões de segurança externa. O Brasil não têm problemas fronteiriços com os seus vizinhos e não participa de uma guerra desde o século XIX (Nóbrega Jr., 2005).
[5] Em países democráticos este controle é feito pelo Ministério do Interior, da Justiça ou da Defesa.
[6] A Constituição brasileira é um claro exemplo de hibridismo institucional. Encontram-se nela artigos com forte conteúdo liberal de um lado, que coaduna um sentido democrático e, de outro, percebem-se características autoritárias.
[7] “No dia 9 de novembro de 1989, com o intuito de pôr fim à greve dos funcionários da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN, em Volta Redonda, o general José Luiz Lopes da Silva e suas tropas invadiram a Siderúrgica (a Polícia Militar do Rio de Janeiro é quem ficou na retaguarda do Exército, quando deveria ter sido o contrário). Da ocupação resultou a morte de três operários que, por sinal, estavam trabalhando para manter os altos fornos em atividade. Dez anos depois, o presidente Fernando Henrique Cardoso, atendendo a uma solicitação do Exército, indicou o general Lopes para o cargo de ministro do STM. Quem poderia ter sido indiciado pelas mortes dos operários se tornaria juiz (...)
Durante a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ do Senado, o general reafirmou que a operação, ‘sob o ponto de vista militar, foi amplamente bem-sucedida’, que sua ‘paciência foi enorme’ e que o ‘radicalismo’ ocorreu do lado dos sindicalistas (Marques, 1999). Indagado pelo Senador Eduardo Suplicy sobre o motivo de não ter utilizado balas de borracha, o general disse que o Exército não possui balas de borracha para reprimir protestos. Mesmo assim, teve sua indicação aprovada por doze votos a favor, três contra e um em branco” (Zaverucha e Melo Filho, 2004; p. 781).
[8] Criado em 10 de junho de 1999 por medida provisória do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
[9] Ressaltar que a atual política anti-terror dos norte-americanos está fortalecendo a posição dos militares dentro de suas instituições de segurança.
[10] Para uma democracia é fundamental que os representantes eleitos pelo povo tenham poder de indicar seus membros e que estes de fato ministrem suas pastas.
[11] A idéia de que a força militar tem de estar sob controle civil não é aceita pelos generais brasileiros. A demissão do diplomata José Viegas do MD, substituído pelo vice-presidente José Alencar, mostra, de forma bastante clara, que os militares brasileiros ainda são incivilizados, ou seja, não aceitam o fato de que, em democracia, o poder emana dos civis, e, a eles devem se sujeitar. A nota do Comando do Exército – que justificava à imprensa a morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura militar, em 1975 – fora divulgada à imprensa a revelia do ministro. Isso o deixou profundamente irritado. Teve a intenção de demitir o comandante do Exército, General Francisco de Albuquerque, mas teve de se contentar com uma retratação pública do General.
Na verdade, tal indisposição retirou Viegas do “comando” do MD e, como afirmou o Cientista Político da Universidade de Brasília (UnB), David Fleischer, “o problema é que nenhum ministro da Defesa até hoje teve autonomia no cargo. Nenhum deles teve poder para demitir os comandantes militares. Ainda não temos tradição na caserna de subordinação aos civis” (Cabral, 2004).
[12] Solange Antunes Resende, assessora e amiga de Álvares, tinha uma sociedade num escritório de advocacia com seu irmão e o então ministro da defesa. A revista Istoé noticiou que Resende juntamente com seus sócios, o irmão Dório Antunes e o ministro, teriam defendido clientes envolvidos com o narcotráfico (Meireles, 1999). Foi aberta uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) onde foi quebrado o sigilo bancário, fiscal e telefônico de Resende, do seu irmão e do ministro Élcio Álvares. Tal situação revoltou os militares que de ponto assumiram uma posição totalmente autônoma quanto ao fato, mostrando que não iriam assumir uma posição em favor do suposto “superior”, pois nunca tinham o considerado dessa forma (Martins, 1999).
[13] Ficou comprovado que aquelas fotos não eram de Vladimir Herzog.
[14] José Alencar entregou a pasta da Defesa para disputar as eleições de outubro de 2006. O atual ministro da defesa é o ex-ministro de Sarney, Waldir Pires.
[15] São domínios reservados implicando em clara transgressão ao critério da efetivação de governos eleitos que de fato governam sem sofrer nenhum tipo de impedimento nos bastidores. As relações civil-militares no Brasil ainda não conseguiram superar este aspecto.
por JOSÉ MARIA PEREIRA DA NÓBREGA JR.
Revista Espaço Acadêmico
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