Por: Alexandre Lyrio (Correio da Bahia)
Encontro das águas do Velho Chico com o Rio Grande agrava estragos no município
Dois gigantes travam combate de leitos, bem em frente ao cais. Sem haver mistura, o encontro das águas dos rios Grande e São Francisco, no município de Barra, a 672km de Salvador, é curioso espetáculo visual, mas também deixa rastro de destruição. Em época de cheia, como a que se iniciou há dois meses, a cidade é sempre uma das mais atingidas em todo o estado. Ali, as águas do Velho Chico não param de subir, e ontem elevaram-se em mais três centímetros, atingindo 6,74m acima do normal, o maior nível do ano. As áreas de charco atingem principalmente a zona rural e o número de famílias desabrigadas já chega a duas mil.
No semi-árido, Barra tem a maior extensão de margem do São Francisco entre os municípios baianos. São 300 Km de transcurso ribeirinho até as proximidades de Xique-xique. “Bem aqui, o Velho Chico recebe o reforço do Rio Grande. A cidade é obrigada a suportar a pressão do rio principal e do seu afluente. O menor faz com que o maior se mantenha subindo”, explica o prefeito Deonísio Ferreira de Assis. Não fosse o dique e o cais de mais de 8m de altura, ambos construídos depois da grande cheia de 1979, Barra estaria vivendo uma das piores enchentes de sua história. “Mesmo assim, estou temeroso de que haja uma chuva torrencial que faça o dique transbordar”. Precavido, Deonísio alugou 18 bombas d água e dois grupos geradores. Em caso de emergência, a água excedente pode ser devolvida para o rio. “Somente assim, a sede da cidade estará completamente livre”, assegura o prefeito. Existem, porém, bairros do perímetro urbano que já foram atingidos. São locais em que o dique não serve de proteção. Nilton da Silva Santos, 41 anos, teve a casa tomada pela água. O Velho Chico também levou móveis, geladeira e a pequena horta em que cultivava feijão e abóbora. Agora está abrigado na casa de um vizinho. “Só não deixo o rio carregar meus cinco filhos”, brinca, em meio ao desastre da cheia.
O estrago provocado pelo Velho Chico é cada vez maior à medida que se afasta da cidade. Mais da metade da área rural barrense foi afetada pela enchente. As comunidades distantes, onde há pelo menos 200 casas destruídas, são as mais prejudicadas. Localidades como Pau Darco, Sambaíba e Canudos, em que 90% das pessoas vivem da agricultura de subsistência, estão ilhados e sem comida. Para esses, já foram distribuídos 800 cestas básicas, 200 colchões e mais de mil metros de lona. “Parte com recursos do município, parte do governo estadual”, informa Deonísio Ferreira.
O acesso para esses locais é difícil. Natalício Borges de Souza, 17 anos, enfrentou quase 3km de água acima da cintura para chegar à comunidade de Bebedouro. “A gente se acostuma”, diz, sem medir o perigo de ser levado pela água ou cair em córrego profundo. Fosse para a cidade vizinha, Xique-xique, teria que superar barreiras ainda mais difíceis. A estrada até o município, 72km a norte, está quase intransponível. Pelo menos três trechos da BA-143 foram destruídos pela água. O último foi interrompido ontem, na altura da comunidade de Angico. A balsa que leva os veículos para a margem oposta também suspendeu suas atividades.
***Doutor enchente faz diagnóstico
Nome de filósofo, sabedoria de quem durante a vida inteira observa o intrigante movimento de subida e descida do maior rio nordestino. Sócrates Teixeira do Nascimento, um barrense de 72 anos, não é geólogo, tampouco técnico em hidrometeorologia. Mas trata da cheia com conhecimento de causa. Aprendeu o assunto com profundidade. “Sou apenas um curioso”, esquiva-se. Suas previsões, porém, são ouvidas como decretos. O próprio prefeito, Deonísio Ferreira, leva em conta as prerrogativas de Sócrates. “Ele é uma enciclopédia, um doutor em enchente”, julga.
Quanto à tragédia atual, a primeira coisa que Sócrates faz é livrar a responsabilidade do rio. “Ele não causa mal a ninguém. As pessoas é que constroem suas casas nas áreas em que ele passa”. Era menino quando viu a cheia de 1949 chegar próxima a sua residência. Fascinado pela força das águas, se negou a fugir da cidade em 1979 e 1992, quando o rio voltou a subir e a mãe e os irmãos seguiram para casa de parentes, em Brasília. “Não iria perder espetáculo tão grandioso. Ainda fiz com que meus filhos conhecessem o fenômeno e ajudassem os ribeirinhos”, recorda. Sabe detalhes de enchentes anteriores, inclusive a de 1919, segundo ele, a mais trágica de todos os tempos. “O nível do rio chegou próximo a nove metros acima do normal”. Sócrates é autodidata. Tem somente o segundo grau completo. Da mesma forma que pesquisa sobre o Rio São Francisco também se interessa pela história geral, da qual chegou a professor. Hoje é autoridade das mais respeitadas em Barra. Braço direito do prefeito, é o secretário de Administração do município. Ontem, trouxe boa nova para a população. “A tendência daqui pra frente é vazar. Temos que nos preocupar agora com a saúde das pessoas. Depois que o rio baixa muita gente pode ficar doente”, avisa. O próprio Sócrates sabe, porém, que a passagem da cheia traz um sem número de benefícios. O solo ganha em fertilidade, as lagoas têm água para irrigação. “Depois da tempestade vem a bonança”, filosofa Sócrates, fazendo jus ao nome.
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