O silenciamento do padre Júlio Lancellotti, personagem que poderia encarnar o “espírito do Natal” na aridez de compaixão em São Paulo, coincidiu com mais um golpe contra a democracia, agora desferido pelo Congresso, dominado pela aliança entre a direita fisiológica e a extrema direita.
Não satisfeito em monopolizar o orçamento, operado de forma obscura por emendas parlamentares, o Congresso enfiou a mão na legislação penal e interferiu em decisão tomada em julgamento público no Supremo Tribunal Federal (STF) de importância histórica para os brasileiros: a primeira condenação de golpistas - de presidente capitão a oficiais de quatro estrelas - em um país que continua a pagar tributos à impunidade dos crimes do golpe de 1964.
De quebra, os que se autointitulam “linha-dura” no combate ao crime, reduziram o tempo necessário de progressão para regimes prisionais mais brandos (semiaberto e aberto), o que vale para uma série de delitos como a corrupção e o desvio de recursos públicos. A lista de crimes contemplados era ainda maior, na versão do PL da Dosimetria aprovado na madrugada na Câmara dos Deputados. Nos casos de crimes com uso de violência, uma emenda de Sérgio Moro, no Senado, restringiu os benefícios aos golpistas de 8 de janeiro, incluindo Bolsonaro e seus generais.
O resultado é um projeto casuísta e perigoso que deve ser vetado pelo presidente Lula e, talvez, declarado inconstitucional pelo STF. A dúvida fica por conta da evidência da existência de acordo prévio entre um ou mais ministros do STF e lideranças políticas para trocar anistia por “dosimetria”. O que não sabemos é se o STF tinha conhecimento da lambança que seria a proposta que saiu da Câmara, pouco alterada pelo Senado, e se vai se calar diante do monstrengo jurídico gerado no Congresso para favorecer criminosos.
Vamos esperar o veto de Lula e a decisão dos ministros com o fôlego renovado pelas vitórias já obtidas nas manifestações deste ano, como o fim do PL da Blindagem, e pela esperança redescoberta da força das ruas, como vimos na maior marcha em COPs da última década, em Belém, e nos atos contra o feminicídio em quase todos os estados. Talvez a gente consiga ainda barrar esse e outros retrocessos, além de eleger gente melhor para nos representar no Legislativo no próximo mandato.
Já sabemos quais são os nossos trunfos nessa luta pela vida das mulheres, dos indígenas, dos negros, dos jovens, dos velhos, por futuro, igualdade de direitos e democracia.
Somos muito mais numerosos do que os extremistas destrutivos, ou os aproveitadores cínicos, que não tem imaginação nem coragem para propor um futuro melhor do que esse modelo em que querem nos aprisionar.
Temos a beleza da vida e das criações humanas para nos inspirar e celebrar, como revelaram a Amazônia que marchou na COP por todos nós e a resistência solidária e altiva das mulheres contra a violência mais cruel - aquela que vem do círculo mais próximo, do companheiro, de familiares, chefes, colegas.
Contamos com a música, os artistas, as mães de santo, os pajés, as evangélicas que atuam pelas comunidades em que vivem, e também com alguns padres, como o nosso Lancellotti, cavaleiro andante que nos lembra todo dia que somos todos iguais e dependemos um do outro.