quinta-feira, outubro 23, 2025

“Sapateiro, não vá além das sandálias” — quando o desconhecimento se transforma em aberração legislativa

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“Sapateiro, não vá além das sandálias” — quando o desconhecimento se transforma em aberração legislativa

A expressão latina “sutor, ne ultra crepidam”, que em bom português significa “sapateiro, não vá além das sandálias”, é um provérbio milenar que carrega uma lição sempre atual: não se deve opinar, legislar ou interferir em assuntos que estão além da própria competência ou conhecimento. E essa máxima cai como uma luva diante do recente episódio envolvendo a Câmara de Vereadores de Jeremoabo.

Tudo começou quando a Deputada Estadual Ludmilla Fiscina, com acerto e senso histórico, apresentou uma moção alusiva à verdadeira data da emancipação política de Jeremoabo, fato que deveria servir de lição de civismo e reconhecimento à história local. Entretanto, ao recordar essa moção, impossível não relembrar o episódio lamentável — e quase trágico do ponto de vista jurídico e institucional — protagonizado pelos vereadores de Jeremoabo, que, movidos pela desinformação e pelo despreparo, tentaram revogar uma lei estadual, contrariando a Constituição Federal, a Constituição Estadual, e até a própria Lei Orgânica do Município.

O que se viu foi uma verdadeira aberração legislativa — um espetáculo de ignorância institucional que só não se concretizou graças à reação firme da população jeremoabense, amplificada pelas redes sociais, pela imprensa independente deste blog, pela lucidez do vereador Zé Miúdo e, sobretudo, pela postura sensata e responsável do prefeito Tista de Deda, que orientou pela busca de pesquisas históricas e jurídicas antes de qualquer tomada de decisão.


Emancipação política: entre o mito e a história documentada

Os registros históricos são claros e incontestáveis. A emancipação política de Jeremoabo ocorreu em 6 de julho de 1925, data em que a então Vila de Geremoabo foi elevada à categoria de cidade pela Lei Estadual nº 1.775. Antes disso, em 25 de outubro de 1831, o povoado havia sido elevado apenas à categoria de vila, o que não representa emancipação municipal, mas apenas uma mudança administrativa dentro de um município preexistente.

E aqui está o ponto central que muitos ignoram — ou fingem ignorar: a elevação de uma vila à condição de cidade não é o mesmo que a emancipação política.

Segundo estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a emancipação municipal está relacionada à criação de um novo município com autonomia política, administrativa e financeira, enquanto a elevação de uma vila a cidade representa apenas uma etapa de desenvolvimento urbano dentro da estrutura já existente.

Ou seja: uma vila elevada não é um município emancipado — são processos jurídicos e históricos distintos.


O que diz a Lei: fatos contra fantasias

A Lei Estadual nº 1.775, de 06 de julho de 1925, foi o instrumento legal que conferiu à então Vila de Geremoabo a condição de cidade.
Mais tarde, em 1943, o Decreto-Lei nº 141, de 31 de dezembro, alterou apenas a grafia de “Geremoabo” para “Jeremoabo”. Desde então, o município se consolidou como sede administrativa e política da região, tendo inclusive parte de seu território desmembrado para a criação de outros municípios, como Glória (1886), Santa Brígida, Coronel João Sá e Pedro Alexandre (todos em 1962), e Sítio do Quinto (1989).

Agora, pergunta-se — e a pergunta não cala:

Qual o poder, respaldo legal e competência detém uma Câmara de Vereadores municipal para revogar uma Lei Estadual?

A resposta é simples e cristalina: nenhum.
A Câmara de Vereadores não tem competência para revogar leis estaduais, muito menos federais. Essa pretensão é um atentado contra o ordenamento jurídico, uma tentativa absurda de subverter a hierarquia das leis — algo que denota falta de preparo técnico, desconhecimento da Constituição e irresponsabilidade institucional.


O papel da razão e o valor da prudência

Diante desse quadro, a postura do prefeito Tista de Deda merece reconhecimento.
Ao perceber o equívoco, o gestor demonstrou o que se espera de uma autoridade pública: prudência, respeito à legalidade e valorização da história. Sugeriu pesquisas, consultou fontes, ouviu a sociedade. Um exemplo de liderança serena e consciente, em contraste com o amadorismo de alguns representantes que confundem política com palco de vaidades.


Conclusão: o saber protege, o desconhecimento compromete

A história de Jeremoabo não pode ser reescrita ao sabor de caprichos políticos ou de interpretações equivocadas. Os fatos estão documentados, e as leis são claras.

O episódio serve de alerta: quem ignora os limites de sua competência corre o risco de se tornar personagem do ridículo histórico.
Por isso, retomando o velho provérbio latino — e agora com a devida atualidade:

“Sapateiro, não vá além das sandálias.”
Em Jeremoabo, isso deveria ser mais do que uma lição: deveria ser uma norma de conduta pública.

 José Montalvão -  Funcionário Federal Aposentado, Graduado e Pós-Graduado em Gestão Pública, proprietário do Blog DedeMontalvão, matrícula ABI C-002025



                                Foto Divulgação