segunda-feira, março 03, 2025

Oscar de Salles mostra que, no final do filme, a democracia vence

Publicado em 3 de março de 2025 por Tribuna da Internet

Ainda Estou Aqui vence Oscar de melhor filme estrangeiro | Agência Brasil

Além de cineasta, Salles é um grande cultor da democracia

Vera Iaconelli
Folha

Sentei para assistir à entrega da estatueta do Oscar, tomada por uma sensação tão inédita quanto a premiação. Foi curioso estar ali, sem grande preocupação com o desfecho do evento, mais interessada na forma como nos unimos em torno desse acontecimento.

Até aí, não havia novidade. Estamos acostumados a torcer juntos nas Copas, e a comparação entre os dois eventos era inevitável – mesmo com Fernanda Torres pedindo encarecidamente que lhe tirassem o fardo das costas. Mas mal sabia ela que a natureza dos acontecimentos era outra.

TORCER JUNTOS – A torcida até era de Copa do Mundo, só que não, pois se tratava de comemorar… a própria torcida! Mais do que torcer, tratava-se de comemorar que houvesse algo em torno do qual ainda pudéssemos torcer juntos, diante da polarização que dividiu o país.

E não é de menor importância que fosse algo ligado à cultura, sustentado na figura de uma mulher, num filme que denuncia a ditadura. Tudo isso depois de uma tentativa de golpe que reedita nosso maior fantasma: o traço conservador e autoritário que nos assombra.

E, como se o universo conspirasse para que a celebração fosse à altura, tivemos nada mais, nada menos do que as bênçãos de um domingo de Carnaval para lhe servir de esquenta. Bom para lembrar que também somos adoradores de Eros.

ESTRATÉGIA VITORIOSA – Enquanto se podia assistir à propaganda dos filmes concorrentes em intervalos de famosos podcasts, outdoors e ônibus norte-americanos, a campanha de “Ainda Estou Aqui” fez outro percurso. Como informou Walter Salles em entrevista, essa não foi a estratégia do filme brasileiro, baseada no corpo a corpo entre os atores, o diretor, os formadores de opinião e o público.

Trabalho de fôlego, que exigiu da equipe jogar-se numa maratona infindável de exibições seguidas de entrevistas coletivas, na participação em talk shows, em ensaios fotográficos, nos deslocamentos de costa a costa, nas festas para “fazer amigos e influenciar pessoas”, nas premiações em festivais mundo afora que antecederam ao Oscar.

Some-se a isso o fato de que Fernanda Torres leva algumas horas a mais que seus colegas homens fazendo cabelo, maquiagem e prova de modelitos de tirar o fôlego, e teremos uma ideia do tamanho da empreitada.

CAVALO DE TROIA – De forma insidiosa, falando de família, por intermédio de uma personagem feminina maternal, deixando a violência pairar opressivamente sem nunca explicitá-la, Salles, fiel ao tom do livro de Marcelo Rubens Paiva, criou seu cavalo de Troia. Perfurou barreiras que têm impedido que o contraditório compareça nas discussões, cada vez mais empobrecidas por cancelamentos e outras formas de violência.

O filme renovou a discussão sobre os desaparecidos na ditadura militar, o destino de seus algozes e a obscena ideia de anistia que nos trouxe até aqui. Foi responsável por apresentar à nova geração algo que lhes parecia anacrônico e improvável.

Filme certo, na hora certa, que cumpriu uma função muito maior do que se podia prever e que está longe de dizer respeito só ao Brasil: a questão sobre a democracia se coloca para todos os governos mundiais. Se cabe à arte trazer reflexão, inspiração e alento diante das agruras de estar vivo, “Ainda Estou Aqui” ganhou em todas as categorias.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Fez-se justiça a Walter Salles, um dos maiores cineastas do mundo. Já era para ter ganho o Oscar antes, com “Central do Brasil”, “Diários de Motocicleta” ou “Abril Despedaçado”. O Brasil precisa se orgulhar dele, uma pessoa verdadeiramente notável. (C.N.)