segunda-feira, março 03, 2025

Mulher de Rubens Paiva foi monitorada até o final da ditadura

Publicado em 3 de março de 2025 por Tribuna da Internet

Quem foi Eunice Paiva, vivida por Fernanda Torres no cinema?

Eunice foi exemplo de resistência contra a ditadura

Géssica Brandino
Folha

Assunto: Eunice Paiva. O carimbo “confidencial” marca o relatório de duas páginas sobre uma palestra da esposa de Rubens Paiva enviado em 17 de julho de 1979 ao então ministro da Justiça. Oito anos após o desaparecimento do ex-deputado, ela era uma voz do movimento pela anistia monitorada por militares.

A palestra ocorreu em 13 de maio daquele ano, durante um ato que reuniu cerca de 150 pessoas em Londrina (PR). O evento fora registrado antes, em 12 de junho, pelo braço de Curitiba do SNI, o serviço de inteligência da ditadura.

DISSE A VIÚVA – No discurso, Eunice cobrou esclarecimentos sobre o desaparecimento do marido, em 20 de janeiro de 1971, questionou a versão do Exército de que Rubens havia sido sequestrado por terroristas, mostrou descrença em relação à punição dos envolvidos e citou uma promessa de que ele seria solto.

Tal promessa, segundo o relatório, fora feita pelo então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid. Ele teria dito que conversara com Rubens Paiva. Este estaria vivo, mas machucado, no 1º Exército. “Me disse também que, para ele sair de lá, era uma questão de tempo, faltava cumprir certas formalidades”, disse Eunice.

Depois, Buzaid negou o encontro com a viúva e afirmou que Rubens Paiva havia fugido.

LINHA DO TEMPO – Cerca de 150 documentos reunidos pela Folha no Arquivo Nacional e na Embaixada dos Estados Unidos permitem refazer a linha do tempo desde o desaparecimento.

A reportagem organizou e traduziu arquivos pela ferramenta de inteligência artificial Google NotebookLM. Depois disso, cada documento foi checado individualmente.

O acervo traz registros não contemplados no filme “Ainda Estou Aqui”, indicado ao Oscar, e até mesmo no livro de Marcelo Rubens Paiva, que baseou a obra cinematográfica.

MÃE E FILHA – Eunice Paiva e sua segunda filha, Eliana, foram presas no dia 21 de janeiro, enquanto Rubens ainda estava vivo. Enquanto a garota, à época com 15 anos, foi solta no dia seguinte, a mãe só seria liberada em 2 de fevereiro. Foi quando ela começou a busca por respostas que chegariam meses, anos depois ou nunca.

Reportagem da Folha de 1981 conta que a confirmação da morte chegou a Eunice pelo então deputado Pedroso Horta (MDB-SP).

No livro, Marcelo diz que a mãe foi informada por um jornalista. Ela não dividiu a notícia com a família e providenciou a mudança para Santos – não para São Paulo, como no filme.

NA EMBAIXADA… – Enquanto Eunice levou seis meses para saber da morte do marido, um memorando da embaixada dos Estados Unidos registrou o fato 22 dias depois do sequestro.

“Paiva morreu sob interrogatório por ataque cardíaco ou outras causas”, diz o documento da embaixada americana. O funcionário escreveu que o caso era “outro exemplo da forte irresponsabilidade das forças de segurança do Brasil”, com potencial para se tornar um problema na gestão Nixon.

Dias antes, em 8 de fevereiro, outro membro da embaixada descreveu o relato de Eunice sobre a prisão.

PAU DE ARARA – “A senhora Paiva foi interrogada em todas as horas, e muitas vezes acordada à noite para interrogatório. Em uma das salas onde seu interrogatório ocorreu, ela viu o pau de arara e equipamento de choque elétrico. Ela também ouviu gritos frequentemente no local”, diz.

“Sua pequena cela continha um colchonete de palha e um chuveiro aberto. Ela não recebeu troca de roupa e, depois de vários dias, conseguiu tomar banho e se secar com o vestido dela, enquanto, discretamente, os guardas olhavam em outra direção. Após cinco dias, sua família conseguiu mandar algumas roupas.”

Anexados, os documentos incluem uma cópia de uma reportagem do New York Times com o relato de Eliana Paiva sobre a prisão dos pais. As publicações foram apontadas como a razão pela qual um correspondente daquele jornal acabaria preso em setembro do mesmo ano.

APELOS INÚTEIS – Além de acionar a imprensa internacional, em fevereiro de 1971 Eunice também escreveu a Alfredo Buzaid, que presidia o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Um mês depois, ela apelou ao presidente Emílio Médici, pedindo “ao chefe da nação a justiça que deve resultar da obediência das leis”.

“É a carta de uma mulher aflita, que viu desabar sobre sua família uma torrente de arbitrariedades inomináveis, e de que é ainda vítima seu marido, engenheiro Rubens Beyrodt Paiva, preso por agentes da Segurança da Aeronáutica no dia 20 de janeiro, mantido até agora incomunicável, sem que se conheça o motivo da prisão, quem efetivamente a determinou e o local onde se encontra”, diz a missiva de Eunice a Médici.

“Não é possível que, mais de 60 dias decorridos, conserve-se assim desaparecida uma pessoa humana! Recusamo-nos a acreditar no pior”, escreve Eunice, em 22 de março de 1971.

CRIME SEM CASTIGO – A correspondência é citada pela jornalista e pesquisadora Juliana Dal Piva no livro “Crime sem castigo: como os militares mataram Rubens Paiva”, lançado em fevereiro.

Apesar dos apelos, o caso foi arquivado pelo conselho em agosto de 1971. Em seu parecer, o relator, na época senador Eurico Rezende (Arena-ES), acolheu como verdadeira a tese dos militares de que Rubens havia fugido.

Eunice é citada como subversiva em relatórios sobre políticos e outros ativistas monitorados pela ditadura. Um informe da Aeronáutica sobre um ato pela anistia em 23 de julho de 1979 revela que a viúva de Paiva criticou o regime e chamou o governo de “camelô, porque está a fim de fazer propaganda”.

ASSUNTO TABU – Contudo a ditadura evitava retaliar familiares de vítimas no período, diz o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que presidiu o Comitê Brasileiro pela Anistia. “Era um assunto do qual a repressão fugia como o diabo foge da cruz.”

Nos anos 1980, Eunice ainda era monitorada pelos militares, que registram sua filiação ao PT, em 1981, em um ato com a presença de Lula. Em 1983, quando Eunice tentou vender um imóvel, o banco pediu uma procuração do marido. Ela questionou a exigência na Justiça e só então o caso Rubens Paiva foi reaberto.

Após a posse de Fernando Henrique Cardoso na Presidência, em 1995, Eunice passa a cobrar do Estado reparação aos familiares de desaparecidos políticos. Recortes de jornais do período mostram o então deputado federal Jair Bolsonaro como um dos opositores da pauta.

NA COMISSÃO – Em 1996, Eunice é a primeira representante da sociedade civil a ser indicada por FHC para a Comissão Especial de Desaparecidos Políticos. Naquele período, ela contribuiu por alguns meses com análises para que outras vítimas da repressão fossem reconhecidas e suas famílias indenizadas.

Os pareceres feitos por Eunice foram citados em 2014 nos relatórios produzidos pela Comissão Nacional da Verdade.

Em seu livro, Marcelo conta que naquele ano a mãe já estava no terceiro estágio do Alzheimer, inerte na cadeira de rodas, quando viu uma reportagem sobre Rubens Paiva na TV. Ela reagiu, repetindo “olha, olha, olha” e “tadinho, tadinho, tadinho”.