quarta-feira, maio 15, 2024

Por que é patológico e até ridículo querer exterminar as fake news?

Publicado em 15 de maio de 2024 por Tribuna da Internet

Charge: Combate às Fake News. - Blog do AFTM

Charge do Cazo (Blog do AFTM)

Mario Sabino
Metrópoles

Ao lado dos interesses político-ideológicos e corporativos em colocar na difusão de fake news a culpa pelos males do país e em transformar o que é opinião contrária em inverdade a ser punida, há uma crescente obsessão psicológica pela criação de uma sociedade limpa de mentiras.

É uma patologia desprovida de qualquer princípio de realidade. O ser humano mente, inventa e aumenta como respira, anda e dorme. A verdade é tão antinatural, que precisamos ser educados para não mentir. Ou, pelo menos, para não mentir tanto.

SEM MORDAÇA – Não estou aqui fazendo apologia da mentirinha ou da mentira cabeluda, daquelas que prejudicam o semelhante. Viu-se muita mentira cabeluda durante a pandemia, mentira que causou mortes, para ficar no exemplo mais extremo.

Estou apenas dizendo que o combate às fake news não pode pretender uma assepsia hospitalar da sociedade — e muito menos usar o conceito para amordaçar adversários. Porque é, antes de mais nada, uma cruzada inútil.

Na política, a mentira integra a job description do profissional da área, seja para golpear oponentes, como para fazer promessas impossíveis. Se todo ser humano mente, no político a mentira é atributo essencial. Inclusive, ou principalmente, porque ele tem de vender a ilusão de que tem solução para tudo — ilusão que alcança o seu ápice nas campanhas eleitorais. Como exigir, então, que torcidas políticas não lancem mão de fake news?

MENTIRA NO MARKETING – Outro campo onde impera a mentira: no da publicidade de produtos. Ou você acredita mesmo que tudo o que nos é vendido tem as qualidades anunciadas nos comerciais?

A história é o império das versões dos vencedores — e, com o politicamente correto, está passando a ser o reino das versões dos perdedores. Existe uma discussão antiga sobre se o grego Heródoto é o pai da história ou o pai da mentira, por exemplo.

Há muita lorota no seu clássico, como o de que havia na Índia formigas maiores do que raposas, mas menores do que cachorros, que devoravam seres humanos. Ele ouvia historietas que lhe pareciam interessantes, passava adiante e não lhe ocorria verificar a sua veracidade. Se houvesse STF em Atenas, Heródoto estaria perdido. O dado curioso é que alguns episódios contados por ele que eram considerados mentiras revelaram-se verdades graças a descobertas arqueológicas.

HERÓDOTO E TUCIDIDES – Certo nível de verificação só começou uma geração depois, com Tucidídes, que descreveu meticulosamente a Guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta. Mas, como disse o inglês Tom Griffith, especialista em ambos, você pode se imaginar amigo de Heródoto, um sujeito fantasioso e divertido, mas não amigo de Tucídides, analítico e frio.

As pessoas têm mais atração pela mentira, inofensiva ou não, do que pela verdade, e é por isso que as fake news se espalham com rapidez. Isso é desde sempre, as redes sociais só aumentaram exponencialmente a velocidade de divulgação. Não é que elas sejam intrinsecamente mentirosas. Nós é que somos.

Na filosofia, o arauto da verdade absoluta foi o alemão Immanuel Kant. Para ele, não bastava dizer a verdade e ser honesto. A verdade e a honestidade tinham de ser desprovidas de qualquer interesse para serem absolutamente morais. Kant chegou ao ponto de afirmar que mentir para salvar um amigo de ser assassinado era crime.

CONSTANT REAGIU – O francês Benjamin Constant se insurgiu contra essa concepção dogmática e entrou em polêmica com Immanuel Kant. Defendeu o direito de mentir para fazer o bem, dizendo que os princípios absolutos tinham de ser moldados pelas circunstâncias. Estou lendo o bate-boca entre os dois.

Fim da digressão. Fiquemos assim – nas expedições punitivas às fake news, não nos deixemos levar pela obsessão patológica.

É inútil buscar a assepsia total, e quem é obcecado com o extermínio das fake news acaba se achando dono de todas a verdades — o que é uma grande lorota.