Num passado recente, o então diretor-geral da Polícia Federal Fernando Segóvia foi destituído do cargo, em 2018, depois que concedeu uma entrevista à agência Reuters na qual minimizou provas obtidas pela Polícia Federal contra o então presidente da República Michel Temer. Considerou-se indevido que um diretor da polícia opinasse sobre aspectos de uma investigação tocada em sigilo por outro delegado.
Aí está uma lição não aprendida. Em janeiro último, causou espanto ver o atual diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, dizer que ele tinha a convicção de que o caso Marielle teria uma resposta final no primeiro trimestre deste ano. O diretor-geral aparece antecipando passos de uma investigação sigilosa que deve ser tratada com o máximo de discrição e cautela. Após a declaração, a cobertura jornalística sobre o caso Marielle se mobilizou para tentar descobrir o que vinha a ser a tal resposta final. É natural a curiosidade, e uma parte indissociável da própria natureza do jornalismo. De repente estoura a notícia da delação que, afinal, não era delação.
Delação existe desde que o mundo é mundo. Que o diga Joaquim Silvério dos Reis, o acusador de Tiradentes e da Inconfidência Mineira. Quando comecei no jornalismo, em 1989, a delação não tinha esse nome, mas era uma prática corrente nas delegacias de polícia principalmente em casos de difícil solução e de maior impacto midiático, como grandes quadrilhas de narcotráfico, sequestros e latrocínios.
O Código Penal de 1940 já dizia, na parte destinada ao crime de sequestro (artigo 159), que o acusado que denunciasse seus comparsas “à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado”, teria sua “pena reduzida de um a dois terços”.
Funcionava assim: o suspeito, normalmente preso, dizia à polícia ou ao Ministério Público que podia ajudar a elucidar o caso, desde que recebesse alguma vantagem. Por exemplo, que recebesse a promessa de cumprir uma pena menor ou de responder ao processo em liberdade.
O delegado ou o promotor então procuravam o juiz do caso e faziam um pedido nesse sentido, como se fosse um apelo: “Fulano está ajudando bastante, solicito ao magistrado que considere essa colaboração neste momento, no ato da sentença ou da definição da pena”. Às vezes não era petição, era apenas uma conversa com o juiz fora dos autos. Ou o próprio promotor, no momento da denúncia, podia solicitar uma pena menor, chamando atenção para a colaboração do acusado.
Em qualquer hipótese, a avaliação sobre a eficácia da colaboração passava por critérios subjetivos, tanto do delegado e do promotor quanto do juiz. Pesariam na decisão não só o espírito colaborativo do acusado, mas também as provas que ele apresentou na hora de acusar seus parceiros. Quanto mais decisivo o delator tivesse sido para o desfecho do inquérito, mais boa vontade ele receberia das autoridades.
Muitos crimes só foram e ainda são elucidados a partir da colaboração de um preso. Em alguns casos, simplesmente não há outra forma de penetrar no muro de mentiras construído pelos criminosos. Uma quadrilha pode deter segredos tão bem guardados que só um dos seus membros haverá de entendê-los e rompê-los. Máfias são reguladas por códigos de silêncio, é preciso uma ajuda interna para destravá-los. Nos anos 1980, Tommaso Buscetta tornou-se o mais conhecido dos diversos arrependidos que implodiram clãs mafiosos na Itália e nos EUA.
Em 2018, a ex-presidente Dilma Rousseff disse que se arrependeu de ter assinado a lei em 2013 que institucionalizou a prática da delação premiada no bojo de uma série de medidas contra organizações criminosas (Lei nº 12.850). É compreensível o desgosto da ex-presidente, manifestado no auge da Lava Jato, mas uma lei não pode ser responsável pelo uso que dela fazem.
A delação é um instrumento importante para o combate a todos os tipos de crime. Porém, um delator pode mentir de inúmeras maneiras e com variados objetivos. Para proteger um aliado, por exemplo. Ou para mandar um recado a fim de buscar proteção dos verdadeiros culpados. Pode também mentir de forma involuntária, ao apresentar fatos e circunstâncias equivocadas, já que a memória é traiçoeira. Ele pode mentir até porque recebeu uma informação errada de alguém que quis confundi-lo lá atrás.
Para que a palavra de um criminoso seja levada a sério, é imprescindível que a polícia ou o Ministério Público façam uma checagem exaustiva do que ele afirma. É necessário que ele apresente o maior número possível de provas sobre o que alega ter ocorrido.
Em resumo, o que um delator diz pode ser tudo, mas pode ser absolutamente nada. É a principal lição a ser aprendida e levada a sério antes e depois de cada anúncio de delação. |
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