Paulo Peres
Na iconografia cristã, os grandes mestres da pintura sempre deram relevada importância em registrar com talento, criatividade e interpretações diversas, o episódio da Natividade (o nascimento de Cristo) com seus personagens – a Virgem Maria, São José, o Menino Jesus, os animais, os pastores e os Reis Magos.
Essas imagens, um dos temas mais comuns na arte cristã, mormente na Idade Média e no Renascimento, estão sempre impregnadas de símbolos, como ressaltam Emile Male e seu discípulo Louis Réau, em livros iconográficos que decodificam a poética dos artistas.
MUITAS VARIAÇÕES – A Virgem, o Menino Jesus e São José, personagens principais do ato passado na estrebaria, o Nascimento de Cristo, conforme a época e os pintores, a cena, bastante conhecida, sofre variações de um para outro artista. No Retábulo Portinari, do flamengo Reoger der Weuden, ou na Natividade, do alemão Hans Baldung, há uma inovação: a do Menino iluminado, adorado por seus pais e os pastores.
“Do corpo do pequeno Cristo irradia intensa luz que ilumina a face extasiada dos personagens”, diz Emile Male. “Não é apenas um menino comum, que jaz no chão ou na manjedoura, reverenciado por Reis Magos e Pastores, olhado e farejado com certa indiferença por dois animais principais: o asno e o boi”.
Neste painel, outros seres ainda podem ser acrescentados, como na pintura da brasileira Rosina Becker do Vale: pavões, leões, corujas, borboletas, além de anjos cantores. “E com tal fidelidade são estes seres representativos do Renascimento que, na Natividade de Piero Della Francesca, identificam-se as palavras do canto gregoriano que pronunciam pelo formato de suas bocas”, afirma Emile Male.
CARÁTER SIMBÓLICO – Os livros iconógrafos relatam que tudo na arte cristão medieval possui caráter simbólico, testemunhos da divindade de Cristo e das mensagens do Novo Testamento. E, por isso, existe um verdadeiro zoológico nos quadros primitivos flamengos, nos renascentistas e no de alemães e espanhóis.
Segundo os especialistas, as fontes dos animais no presépio vieram, principalmente, da Bíblia, dos Salmos e da Lenda Dourada, a hagiografia dos santos (história dos santos) tão consultada pelos artistas da Idade Média. Nelas os animais não são classificados por espécies, família e gênero, como fez Carlos Lineu, no início do século XVIII, e sim por suas virtudes ou malefícios morais.
“Na Idade Média”, diz Emile Male, “tudo é signo e o visível só vale porque esconde o invisível. Logo, temos o significado de alguns animais que sempre aparecem em quadros de mestres que pintaram o tema Natividade”.
OS SIGNIFICADOS – O Cordeiro (Agnus Dei), por sua mansidão ante a morte inevitável, geralmente, simboliza Cristo e seu sacrifício pela humanidade, sobretudo quando aparece imóvel, salienta Emile Male.
“Mas também pode significar a Ressurreição do Cristo. Todavia, devemos nos lembrar que Ele não simboliza, exclusivamente, a imagem de Jesus imolado ou ressuscitado. Ele pode ser o símbolo místico do Apocalipse que se aproxima, ou a inocência dos santos”.
O asno e o boi são animais inevitáveis em todas as Natividades. O asno, que mais tarde ajudará a Sagrada Família a fugir para o Egito, na iconografia do Natal tem vários significados. Humilde o doce, ele era chamado “o cavalo do pobre” e tem sempre um papel simpático na Bíblia. Na gruta natalina, ele esquenta com seu hálito o Menino Jesus na manjedoura.
PAPEL HUMILDE – Já o boi tem um papel humilde de Natalidade. Seu hálito também ajuda a acalentar o Menino na noite de inverno natalino. Ele, iconograficamente, simboliza ainda o sacrifício de Jesus, assimila a ideia de reprodução humana e é a vítima nos sacrifícios religiosos. Por isso, o boi não tinha boa reputação na Bíblia, que condenava o sacrifício dos animais aos deuses.
Os cavalos dos Reis Magos, ricamente adornados, significam a riqueza do mundo em comparação à do Filho de Deus, explica Emile Male. “A este bestiário luxuoso, vários artistas como Ticiano, Rubens e Veronese, acresceram outros animais simbólicos: pomba, pavão, cervo, galo e leão, além dos anjos que evoluem como símbolos da pureza velando pela Sagrada Família”.
A pomba, símbolo da paz que reinará um dia sobre a humanidade após o Juízo Final, foi a emissária da Anunciação e do término do Dilúvio Universal. “Signo do Espírito Santo, da alma do penitente purificada pela morte, ela se opõe ao negro corvo, encarnação do Diabo. A pomba também simboliza a Igreja nascida no Pentecostes”, sustenta Emile Male.
OUTROS ANIMAIS – O cervo, segundo o Salmo 41, após beber no regato, brame pela presença do Messias. Ele é também o matador da serpente tentadora. Já o pavão de caudas é reverenciado pelos cristãos primitivos como símbolo da redenção e da vigilância contra o pecado. Mas em pintura, era também um animal que permitia vivas combinações de cores”, constata Emile Male.
O galo não significa apenas o símbolo da regeneração e do remorso de São Pedro, é também a imagem de Cristo que, no terceiro dia, ressurgiu das trevas para a Ressureição. Seu canto matinal não apenas acorda o homem para o trabalho, mas serve para lembrá-lo que mais um dia passou e a morte se aproxima.
E o leão, símbolo da coragem e da força, paradoxalmente, significa também a sepultura, onde um dia os restos mortais irão repousar. Além desses símbolos iconográficos da Natividade, outros foram adotados para significarem o bem ou o mal. “Na Idade Média e, desde a Arte Cristã Primitiva, o importante das imagens não eram suas qualidades físicas, mas seu conceito metafísico, pois a metafísica, no mundo medieval, era a única filosofia que explicava o Universo”, afirma Male.