João Pereira Coutinho
Folha
Fica a pergunta: será que um agricultor, em plena Idade Média, sabia que estava a viver uma “era das trevas”? Será que ele sabia que era demasiado tarde para experimentar as glórias da Antiguidade e, por outro, demasiado cedo para colher os frutos do Renascimento?
A pergunta é formulada por Kyle Chayka na New Yorker e eu sorri. O autor pondera se não estaremos a viver uma nova Idade Média. Houve a Covid. Trump e o assalto ao Capitólio. A invasão russa da Ucrânia. O ataque do Hamas em Israel. E a inteligência artificial promete arrasar com a humanidade.
PERGUNTA ABSURDA – Que nome podemos dar ao nosso período angustiante? Estaremos numa fase de transição para um mundo melhor? Ou pior, muito pior?
Sorri com a pergunta, repito, porque ela é deliciosamente absurda. Não existem “eras de trevas” ou “eras de luz”, exceto para os “philosophes” do Iluminismo que, na famosa “Enciclopédia”, passavam diretamente da filosofia antiga para a filosofia moderna, sem prestar atenção ao pensamento medieval. Mensagem deles: não houve pensamento medieval, só ignorância e superstição.
Suspiros. Será preciso lembrar, com uma vênia ao sr. Charles Dickens, que cada época histórica transporta sempre o melhor dos tempos e o pior dos tempos?
HOUVE AVANÇOS – A Antiguidade deu-nos a filosofia grega e a legalidade romana; além da escravidão e dos inocentes jogados às feras. O Renascimento deu-nos Leonardo e Michelangelo; mas também as guerras religiosas e a Inquisição Espanhola.
Até a Idade Média participa dessa ambiguidade. O crescimento demográfico e a peste negra, as primeiras universidades e as cruzadas — tudo conviveu no mesmo tempo e, às vezes, no mesmo espaço.
O agricultor da Idade Média desconhecia os rótulos com que os vindouros acabariam por classificar a sua época. Mas uma coisa é certa: os medos desse agricultor são os nossos porque tudo muda, exceto a natureza humana.
OS MILÊNIOS – O grande historiador Georges Duby gostava de fazer comparações pertinentes entre o ano 1000 (o auge da Baixa Idade Média no Ocidente) e o ano 2000, quando as ansiedades do milênio regressaram em força para nos assombrar.
Os medievais tinham medo da sua impotência perante uma natureza que não controlavam. Nós também temos. Os medievais tinham medo do outro, do estrangeiro, do desconhecido — e razões não faltavam. Dos vikings aos povos godos, sem esquecer os sarracenos, o outro podia não ser uma visita amigável.
Os temores com as migrações, que têm levado a extrema-direita ao poder na Europa, também transportam essa memória histórica. Os medievais tinham medo da doença, sobretudo das epidemias sazonais que dizimavam povoações inteiras. Nós? Nunca fomos tão hipocondríacos.
MEDO DA MORTE – Uma diferença, porém, nos separa do agricultor medieval. Como lembrava Duby, ele não tinha medo da morte, apenas do Além, quando seria julgado por sua conduta terrena.
Nós não tememos o Além — quem acredita nisso, certo? —, mas temos um medo da morte jamais visto na história da civilização ocidental. Talvez porque, ironicamente, a crença de que só existe uma vida coloca sobre essa vida expectativas angustiantes.
Eis a nossa condição: nunca nos sentimos tão desenvolvidos; mas, ao mesmo tempo, nunca nos sentimos tão abandonados e vulneráveis.
VEJA O FILME – É um contraste cômico. Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria assistir ao filme “O Mundo Depois de Nós” (na Netflix), uma distopia apocalíptica onde estão condensados todos os medos do “homo Americanus” em pleno século 21. São medos do “homo occidentalis” também.
O medo da desconexão (aquele momento em que a tecnologia deixa de funcionar, como Don DeLillo já tinha antecipado no seu “O Silêncio”).
O medo dos brancos em relação aos negros (e dos negros em relação aos brancos). E, entre os brancos, a desconfiança entre os brancos progressistas e o “cesto dos deploráveis” da América rural. O medo dos chineses, dos norte-coreanos, dos iranianos —e de todos ao mesmo tempo.
TEMPESTADE PERFEITA – Há até o medo da guerra civil, sobretudo em vésperas da eleição presidencial de 2024.
Perante essa tempestade perfeita, não admira que a adolescente do filme viva obcecada com a série “Friends”, representação de um tempo arcádico em que havia, pelo menos, uma promessa de felicidade.
Incapazes de lidar com o trágico, resta-lhe a fuga, o isolamento, o bunker. É uma bela metáfora.