segunda-feira, julho 24, 2023

Por um jornalismo humano

 

Por um jornalismo humano


Há alguns meses, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) me pediu para fazer um vídeo sobre o futuro do jornalismo. O convite era intrigante, em especial porque eu, como sabem todos que estão me lendo, não tenho a menor ideia de como será o meu próprio futuro daqui a cinco anos – ainda mais em um momento em que as temperaturas batem recorde há mais de vinte dias, adiantando um pesadelo que estava marcado pra o final da década. Que dirá o futuro do jornalismo. 

Mas confesso que me diverti com a ideia de sair por aí adivinhando futuros e achei por bem começar, claro, perguntando ao Chat GPT qual seria o título de uma palestra sobre o futuro do jornalismo. O robozinho me sugeriu o seguinte: “A reinvenção do jornalismo: explorando novas tecnologias e modelos de negócios”. 

Obviamente não nos interessa, aqui, nem novas tecnologias e novos modelos de negócios – não é esse meu objetivo numa reflexão mais profunda sobre para onde estamos indo. 

E, como tenho pensado sobre a questão da inteligência artificial, achei importante começar por aí. Afinal, quando robôs conseguem inventar títulos e subtítulos de maneira surpreendente – e malandra – mais do que nunca, pensar o futuro do jornalismo implica olharmos para dentro. 

Há algum tempo as tecnologias da informação deixaram de nos trazer esperanças para, em vez disso, criar angústias. É o que acontece com os jornalistas hoje em dia. A nossa redação aqui na Pública, como todas as redações do mundo, tem sido palco de acaloradas discussões sobre se, e como, devemos abraçar a inteligência artificial (IA). E, por outro lado, a dúvida sincera sobre o que vai sobrar do jornalismo que entendemos hoje depois da popularização das ferramentas de IA. 

Minha resposta tem sido: muito pouco – e por nossa própria culpa. 

Nos últimos anos, a internet se plataformizou. O que isso significa? Que poucas corporações conseguiram abocanhar um pedaço tão grande do mercado online, que transformaram a internet numa praça pública controlada por um punhado de empresas. Você sabe bem quem são elas: Google, Facebook/Meta, Amazon, Twitter, TikTok, hoje são verdadeiros atravessadores de tudo o que é falado entre seres humanos. 

Como a relação é mediada pelas plataformas, nós, jornalistas, passamos a adotar modos de escrever, de elencar conteúdos, de mostrar imagens, que respondem às demandas das plataformas. Aprendemos avidamente a palavrinha magica, SEO, para deixar nosso conteúdo mais quadrado, mais curto, mais detectável por robôs. 

Passamos a deixar de lado o texto autoral, a delícia da descoberta, a inventividade, a explicação empática, a alegria do texto bem escrito, para trabalhar para robôs. Perdemos a conexão com nosso público. E seguimos sem ouvir nossa audiência, com uma ligação que cada vez é mais frágil, mais mediada e menos humana. 

Esse eu acho que tem sido o maior erro estrutural do jornalismo nos últimos anos: entregar-se aos robôs e deixar de lado o que é essencialmente o nosso trabalho: contar histórias. 

E temos sempre que lembrar que os algoritmos, esses robôs que hoje controlam as comunicações humanas, não são neutros, mas são máquinas de prender a atenção e fazer dinheiro através do ódio, da raiva, etc. 

Assim, nos acostumamos a trabalhar para robôs, modificando o nosso jornalismo ao que exigem os algoritmos, que, insaciáveis, hoje em dia querem mandar não só no título, mas no tema, nas fotos para rodar em redes sociais e até no tamanho dos parágrafos. 

E porque nos tornamos – como cordeirinhos – escravos dos robôs que, em troca, não nos dão nenhuma previsibilidade, a maneira mais óbvia de usarmos e inteligência artificial será empregá-la em tudo o que somos obrigadas a entregar para satisfazer a sua fome. Ou seja: colocar o chat GPT, Bard e qual mais seja para fazer resumos, tags, títulos em SEO, mil versões de tweets ou posts para redes sociais. Deixar os robôs trabalhando para robôs. E nos livrarmos de uma vez disso. 

Será preciso nos livrarmos dessas tarefas repetitivas para redescobrirmos, afinal, o que faz do nosso jornalismo humano, demasiado humano. 

O impacto da inteligência artificial terá de ser necessariamente o barateamento de tudo o que é óbvio – como o chat GPT prever que o futuro do jornalismo está no passado, naquilo que nós já fizemos. 

 

Num mundo em que robôs entregam o que já foi escrito, é a criatividade humana, a voz única, a originalidade na ideia e no texto que terá valor. É aquilo que robô nenhum é capaz de imaginar. 

  

Estamos entrando numa era em que o texto autoral, o olhar único do repórter, a escuta ativa e curiosa do que o público tem a dizer, serão os melhores guias para as redações. Precisamos buscar o que sempre fez do ser humano um ser que constrói, conta e aprende com as histórias. Temos que relembrar porque, cinco mil anos depois dos primeiros humanos terem desenvolvido a linguagem, nós ainda somos arrebatados ao escutar uma boa narrativa ao redor de uma fogueira ou na mesa de um bar. 

Como enxergamos ou queremos enxergar o mundo? Como nós, jornalistas, temos errado ao descrever o mundo, ajudando no fenômeno do “news avoidance”, os brasileiros que cada vez mais evitam ler as notícias? Onde temos errado e por que nossa indústria é tão aferrada a uma nostalgia de um tempo que acabou? Como podemos recontar o mundo, permitir aos mais jovens experimentar a alegria de descobri-lo e criar novas soluções e novos rumos da história? Onde termina a utilidade da tecnologia e quando ela nos escraviza? 

Essas são algumas das questões existenciais que vamos enfrentar daqui em diante. 

Teremos que ser capazes de ouvir nossa audiência, sim, de engajá-la no nosso fazer jornalístico, mas mais do que isso: temos que ser capazes de entregar um jornalismo tão humano, tão original, que não poderá ser substituído. 

A resposta para automatização do espaço público não é produzir mais e mais roboticamente; é produzir menos, é apostar na descoberta das conexões invisíveis que regem a sociedade e nas histórias que explicam de maneira mais profunda por que, afinal, faz sentido essa existência humana, esse espaço da terra que se chama Brasil. 

Não existe e nem existirá robô que vai ser capaz de responder isso; afinal, a inteligência artificial será, sempre, adivinhadora de passados. E o jornalismo do futuro está ainda por ser inventado.


 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública