sexta-feira, junho 23, 2023

Colarinhos brancos, punhos sujos

 

Colarinhos brancos, punhos sujos

Não são apenas crimes de colarinho branco que recaem sobre alguns parlamentares do Congresso Nacional. Para além da malversação de verbas públicas, com emendas direcionadas para aliados políticos, orçamentos secretos e propinas de lobistas, nosso representante máximo do Centrão – e presidente da Câmara dos Deputados –, Arthur Lira, prova que até acusações de crimes hediondos, como o estupro, são toleradas, sob um manto de silêncio, a depender da força do suspeito.

“Aconteceu uma coisa que eu nunca contei a ninguém, ele disse pra mim: ‘Você está atrás de macho, eu vou lhe mostrar quem é o homem’. Ele me puxava pelo cabelo e dizia: ‘O homem aqui… você é minha mulher, você não vai ter outro homem, você é minha, você é a mãe dos meus filhos. Você quer me desmoralizar, vamos lá para o quarto agora que eu vou te mostrar quem é o homem aqui, você não quer isso? Você não está querendo? Atrás de homem pra quê? Pra fuder? Então vou lhe mostrar agora.” Foi quando o deputado Arthur Lira a teria puxado pelo cabelo e a violentado. 

A cena chocante, que teria ocorrido em 5 de novembro de 2006, foi narrada pela ex-mulher de Lira, Jullyene Lins, à repórter Alice Maciel, que investigava a história desde o ano passado, quando revelou que Arthur Lira só havia reconhecido a paternidade de uma filha com doença rara, nascida fora do casamento com Jullyene, depois que a mãe entrou na Justiça por não ter recursos para pagar o medicamento da menina, então com 7 anos. Àquela altura, Jullyene, que foi casada dez anos com Lira, já havia dito à imprensa que ele a tinha espancado, com socos e pontapés, naquele 5 de novembro, e que depois a havia ameaçado de morte por ela ter denunciado a violência doméstica que sofria à polícia. 

Não havia, porém, falado da acusação de estupro, o que só fez agora, na reportagem publicada nesta quarta-feira, depois de estabelecida a confiança com a jornalista da Pública, mais de um ano depois do primeiro contato. “Eu aguentei isso esse tempo todo, eu guardei por 17 anos isso por conta dos meus filhos, por conta da minha família, a vergonha também, a gente se sente um lixo. Eu estou falando isso agora porque preciso tirar esse peso das minhas costas, não é para denegrir [sic] a imagem dele”, disse Jullyene ao revelar o alegado estupro.    

Mas a repórter Alice Maciel fez mais do que trazer as acusações de violência sexual narradas por Jullyene. Ela se debruçou sobre o processo judicial embasado na Lei Maria da Penha, movido a partir do inquérito policial aberto com o Boletim de Ocorrência lavrado por Jullyene na noite das agressões, em 2006. O BO foi publicado na reportagem, assim como o laudo de exame de corpo de delito, obtido pela repórter, que constatou “ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente” com “instrumento contundente”, oito hematomas nas regiões da lombar, glúteos, coxas, antebraços e pernas. 

O laudo do IML foi definitivo, assim como os depoimentos da mãe e do irmão de Jullyene e de duas funcionárias da casa, confirmando a agressão, para a delegada Fabiana Leão Ferreira indiciar Arthur Lira em agosto de 2007: “O exame de corpo de delito foi a prova material robusta, técnica, isenta de qualquer julgamento. Eu tinha prova material, era inequívoca, as testemunhas falavam de forma coerente, contavam a narrativa, os depoimentos eram verossímeis com o fato”, reafirmou 16 anos depois à Pública. 

O processo, porém, levou nove anos para ir a julgamento, o que só ocorreu em setembro de 2015 no STF. Naquele momento, o deputado estadual que Jullyene havia denunciado em 2006 já tinha foro privilegiado, como deputado federal de segundo mandato. Também já era visto como homem de prestígio nos círculos do poder. Foi inocentado por prescrição e falta de provas, já que no decorrer do processo as testemunhas – e a própria Jullyene – voltaram atrás em seus depoimentos. O motivo: medo. Em 2008, Lira chegou a ser preso por coação no curso do processo, meses depois de o elo mais frágil – a babá que ouviu os gritos, viu o estado deplorável de Jullyene e chamou a mãe dela para socorrê-la – já ter voltado atrás no depoimento prestado à polícia. Alice tentou falar com a babá, como fez com peritos, policiais e testemunhas, mas foi alertada por pessoas próximas de que ela não falaria por ter muito medo. Já a retratação de Julyenne, abandonada por seu advogado depois que a esposa dele foi contratada pelo gabinete de Lira, pode ser resumida em uma palavra: medo, mais uma vez. Ao ameaçá-la para obrigá-la a retirar a denúncia, o atual presidente da Câmara lhe teria dito: “Onde não há corpo, não há crime”, contou à repórter da Pública.

Lira não quis comentar as denúncias. Na reportagem do ano passado, sobre a filha doente que abandonou, ele se pronunciou: “Eu não tenho nada para falar, sou uma pessoa normal, que segue a minha vida, trabalhando e fazendo as minhas coisas. Sem falar que minha vida pessoal não diz respeito a ninguém”, afirmou. 

O deputado, tão cioso dos privilégios do cargo que ocupa, parece não ter consciência de sua responsabilidade como homem público nem do impacto social negativo que sua atitude e impunidade projetam em um país em que é corriqueiro o abandono dos filhos pelos pais e a violência física/sexual atinge mais de um terço das mulheres. 

Tendo a decisão do STF como escudo, tenta passar a borracha na história, sob a cumplicidade de todos os que se calam agora diante dos documentos e fatos gravíssimos revelados pela Pública. Entre eles, deputadas e deputados de A a Z – ou do Psol ao PL – e, inexplicavelmente, a imprensa tradicional, que não repercutiu a reportagem mesmo se tratando de suposto crime cometido pelo presidente da Câmara, o que seria um comportamento inadmissível por parte da mídia em qualquer país democrático. 

Meus parabéns à repórter Alice Maciel e a seu editor, Thiago Domenici, diretor da sucursal da Pública em Brasília, que persistiram juntos, com a mesma coragem, na apuração e revelação dessa história tão sintomática deste país de desigualdades e privilégios e tão inspiradora para os que acreditam no jornalismo independente de interesse público. 



Marina Amaral
Diretora executiva da Agência Pública

marina@apublica.org