sábado, maio 27, 2023

MAS, AFINAL, O QUE É OBSTRUÇÃO DE JUSTIÇA?

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Por Cinthia Menescal - 22/05/2017

Nos filmes e seriados policiais norte-americanos, a obstrução de justiça (obstruction of justice) é invocada, diante de qualquer interferência em investigação policial ou procedimento judicial, parlamentar e até perante agências federais. São seus exemplos o impedimento à coleta de provas; sua destruição, alteração ou ocultação; coação a jurados, testemunhas e funcionários da Justiça; e em outras situações nas quais seja ameaçado o andamento do próprio processo ou a efetivação da sentença. [1]

Conheci um oficial de justiça, que invocava a expressão, em consciente leviandade, perante a família, amigos e vizinhos dos réus, que ocultavam seu paradeiro, para evitar as citações e intimações.  Infelizmente, no Brasil, a expressão tornou-se de uso comum graças à nossa constrangedora crônica política.  Hoje, a obstrução de justiça é “crime” atribuído a vários de nossos mandatários e autoridades, sem que até muito destacados operadores do Direito conheçam sua definição.

O equívoco se disseminou entre nós, a partir da edição da Lei 12.850 de 02.08.2013, que estabeleceu o conceito de organização criminosa (artigo 1º, parágrafo 1º), disciplinando a investigação e obtenção de provas da existência e funcionamento destas organizações.

As condutas criminosas previstas neste diploma estão enumeradas em seu artigo 2º, entre as quais figuram como principais promoverconstituirfinanciar ou integrarpessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa (artigo 2º, caput).

Em seu parágrafo 1º, o legislador equiparou-lhes as condutas de impedir (bloquear, evitar, inibir, obstruir) ou, de qualquer forma, embaraçar (atrapalhar, perturbar, tumultuar) a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. É de notar o recurso a uma fórmula analógica (ou, de qualquer forma), para dar maior alcance ao tipo, evitando os riscos do casuísmo.

Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

Embora a lei seja bastante precisa, aludindo apenas à investigação, há quem entenda, equivocadamente, que a obstrução pode ocorrer não só no inquérito policial, administrativo ou civil, mas também durante a ação penal.

Seja nas modalidades previstas no caput, seja naquelas enumeradas no parágrafo 1º,  é certo que se está diante de condutas consideradas tão graves que a sanção cominada pode ser ainda mais elevada que aquela prevista para o(s) crime(s) cometidos pela organização criminosa: pena de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, além da multa, ambas somadas às sanções pelas infrações penais praticadas pelos seus integrantes.

O parágrafo 4º do mesmo artigo 2º trata de cinco causas especiais de aumento de pena, que podem agravá-la de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).  Entre estas, destaca-se a autoria ou participação de funcionário público que pratica qualquer destas condutas prevalecendo-se de sua condição (artigo 2º, parágrafo 4º, II).

Convém ressaltar que, no âmbito do Direito Penal, o conceito de funcionário público é bastante abrangente, alcançando também os detentores de mandatos eletivos e aqueles que ocupem cargo, emprego ou função pública transitória e sem remuneração, inclusive em entidades paraestatais (empresas públicas, sociedades de economia mista e serviços sociais autônomos).

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

Parágrafo único. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal.

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 6.799, de 1980)

§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei nº 6.799, de 1980)

Havendo indícios da participação de funcionários públicos, poderá ser decretado seu afastamento cautelar do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e, como efeito específico de uma sentença condenatória, a interdição para o exercício da função ou cargo público por oito anos, após o efetivo cumprimento da pena (artigo 2º, parágrafo 6º).  Se o integrante for policial, o órgão disciplinar da corporação instaurará inquérito policial, que será acompanhado por um membro do Ministério Público (parágrafo 7º).

Feitas estas considerações, conclui-se que as condutas mais assemelhadas ao instituto da obstrução de justiça, tal como existe no direito norte-americano, estão previstas no capítulo que trata dos Crimes contra a Administração de Justiça (Código Penal, artigos 338 a 359), especialmente nos crimes de denunciação caluniosa, falso testemunho, coação no curso do processo, fraude processual, patrocínio infiel e simultâneo, sonegação de papel ou objeto de valor probatório, exploração de prestígio e desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito.

Em que pese a imoralidade e má fé de qualquer conduta que tenha por finalidade impedir a concretização da justiça, além da existência de um mandado convencional de criminalização (Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – Decreto nº 5.687/2006, artigo 25), no Brasil, ainda não se pode falar em crime de obstrução de justiça, face à inexistência de previsão legal deste instituto em nosso Código Penal, Código de Processo Penal ou em qualquer outra lei que contenha dispositivos criminais.

Constatada a prática destas condutas - graças a garantia constitucional da legalidade estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege stricta) - afasta-se a possibilidade de sua punição a este título, levando a subsunção da conduta a um dos tipos penais previstos entre os Crimes Contra a Administração da Justiça.


Notas e Referências:

[1] Obstruction of Justice. Wex Legal Dictionary Encyclopedia. Cornell Law School. Disponível em http://www.lawcornell.edu. Acesso em 18.05.2017


Cinthia Menescal. . Cinthia Menescal é Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro. Professora de Direito Penal da UNIRIO. Doutora em Direito Penal pela UERJ. . .


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