sábado, abril 01, 2023

Ruralistas fraudam registros e continuam usurpando terras indígenas na Amazônia

Publicado em 1 de abril de 2023 por Tribuna da Internet

Operação do Ibama em área desmatada dentro da terra indígena Pirititi, em 2018

Operação do Ibama dentro da reserva da tribo Pirititi

Vinícius Valfré
Estadão

A grilagem de terras avança agora de forma digital na Amazônia. Criado a pretexto de centralizar informações sobre a vegetação nativa, o sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) permitiu um “vale tudo” na internet e virou uma ferramenta para tomada de florestas e invasão efetiva de territórios indígenas e da União. Nos últimos dez anos, entretanto, o cadastro, que é autodeclaratório, se transformou numa máquina rápida de produzir documentos oficiais que passam a ligar grileiros a terras indígenas ou devolutas.

O mecanismo da grilagem digital avança especialmente nas terras indígenas com processos de homologação em fase inicial. Por meio de cruzamentos de bases de dados geoespaciais com milhares de registros do CAR, o Estadão identificou 325 fazendas registradas ilegalmente, entre 2014 e 2023, sobre cinco áreas que deveriam ser ocupadas exclusivamente por comunidades tradicionais da floresta.

LEI INADEQUADA – A legislação diz que o CAR é válido enquanto os órgãos ambientais dos estados não reconhecem a ilegalidade, ainda que as propriedades estejam flagrantemente sobrepostas a terras públicas.

Como o poder público leva anos para analisar cada registro, o grileiro inscreve áreas virgens no sistema e consegue instantaneamente um documento oficial da terra.

A demora na análise do cadastro dá tempo ao falsificador de se consolidar como proprietário de seu suposto imóvel. Com o cadastro, fazendeiros podem, por exemplo, emitir guia para transporte de gado e até solicitar financiamentos.

BRIGAS DE GRILEIROS – As projeções mostram brigas de grileiros pelos mesmos espaços e um avanço feroz de fazendeiros sobre florestas de Roraima, Rondônia, Amazonas, Pará e Mato Grosso.

A grilagem digital combinada com desmatamento se intensificou nos momentos em que o governo federal negligenciou a renovação das proibições de acesso às terras, restrição que caracteriza áreas em vias de reconhecimento por decreto.

Na criação do CAR em 2012, o governo federal argumentou que pretendia mapear informações ambientais de todos os imóveis rurais do País. Cada dono de terra deve informar ao governo características hidrográficas, áreas de proteção, florestas, restingas e veredas, por exemplo. Os dados são enviados pela internet, por meio dos sites dos órgãos ambientais. O que se viu, no entanto, foi um novo mapa de áreas extensas da floresta elaborado pelo crime organizado de terras.

CONFUSÃO GERAL – As fragilidades tornam o sistema vulnerável aos falsificadores e prejudica o próprio mercado de terras e proprietários do País inteiro isso porque o cadastro não separa o proprietário real de um falsário.

Referência na pesquisa e no enfrentamento à grilagem de terras, a promotora Eliane Moreira, do Ministério Público do Pará, avalia que é urgente uma atualização no sistema do CAR que impeça automaticamente cadastros sobrepostos a terras indígenas ou áreas públicas.

“É uma providência para ontem”, diz ela. “O CAR não tem utilidade fundiária. O problema é que o decreto que regulamentou o Código Florestal diz que enquanto não for analisado o cadastro pelo órgão ambiental ele é válido para todas as finalidades previstas em lei. Para quem quer desviar ele acaba sendo muito útil”.

EXEMPLO DE RORAIMA – O CAR é gerido pelo Serviço Florestal Brasileiro. No governo Bolsonaro, foi transferido do Ministério do Meio Ambiente para a pasta da Agricultura, o que motivou críticas de ambientalistas. Na nova gestão de Lula, o serviço voltou a ser atribuição do Meio Ambiente, ministério de Marina Silva.

Em Roraima, 40 mil hectares da terra indígena Pirititi são interditados pela Fundação Nacional do Índio desde 2012. As chamadas “restrições de uso” a não indígenas eram renovadas a cada três anos. Nem assim foram suficientes para barrar o avanço do crime. Em 2018, o Ibama fez a maior apreensão de madeira ilegal em Roraima. Mais de 7,3 mil toras foram confiscadas na região dos Pirititi.

No governo de Jair Bolsonaro, a validade das portarias caiu para seis meses. A medida ampliou a pressão de grileiros e madeireiros sobre os pirititi em virtude da expectativa de revogação definitiva da interdição. De 2019 a meados de 2022, fazendas que somam 30% da área indígena foram griladas e aparecem registradas em sobreposição ao território, aponta o levantamento do Estadão.

FRAUDE CONFESSADA – Em junho de 2020, Jalisson Parente decidiu que uma fazenda de 1800 hectares dentro da área dos Pirititi seria dele. O espaço equivalente a 2.500 campos de futebol fica quase integralmente na porção norte da terra indígena. Filiado ao MDB, Jota, como é conhecido, admitiu que chegou à fazenda porque “estava atrás de terra”. Ele acessou o CAR e cadastrou o terreno como dele.

À reportagem, ele negou ter relação com o desmatamento no local e disse que só soube dos índios que ali habitavam posteriormente. “A gente estava atrás de terras, mas não levamos à frente”, disse.

Outra evidência de fraude está em uma fazenda ainda maior ao sul do território Pirititi. Com 2 mil hectares, a Fazenda Marinho foi inserida no CAR em 28 de maio de 2021 por um contador que vive no entorno de Brasília. Localizado pela reportagem, Eduardo Marinho negou ter propriedades em Roraima. Perguntado se tinha alguma ideia sobre como todos os seus dados pessoais foram parar no cadastro, ele disse apenas “não registrei nada, então nem vou ligar para isso”.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG 
– Belíssima reportagem. Mostra que reina a esculhambação no registro agrário e quem precisa consertar a bagunça é madame Marina Silva, a patricinha da selva. Até agora, a falsa seringueira não deu uma só palavra a respeito. Quem levantou tudo foi Vinicius Valfré, do Estadão, com a imprensa fazendo o papel que cabe ao governo. (C.N.)