quarta-feira, abril 05, 2023

O que Putin quer de Lula?




Em 2014, Dilma disse que não iria se manifestar sobre um “assunto interno” da Ucrânia, como se a invasão de seu território pudesse ser assim classificada. 

Por Paulo Roberto de Almeida, diplomata

Em meados de abril próximo, o eterno chanceler da Rússia, Sergey Lavrov deverá visitar o Brasil, e seu mais importante encontro não será, talvez, com o chanceler oficial, Mauro Vieira, mas provavelmente com o chanceler oficioso, Celso Amorim. Ambos se conhecem de longa data, antes ainda que tramassem conjuntamente a transmutação do Bric original – uma mera plataforma de investimentos em economias emergentes, sugerida pelo economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs – em um Bric diplomático, com a adjunção dos outros dois países incluídos no acrônimo, Índia e China. Tal transfiguração da lagarta do Bric, antes da emergência do Brics — que mais se parece com um ornitorrinco, dadas as suas bizarras características — transcorreu nos dois últimos anos do primeiro mandato de Lula (2003-2006), quando a sigla já tinha adquirido certa notoriedade de imprensa, em vista do grande dinamismo econômico então apresentado pelas quatro grandes economias emergentes. Foi um gesto ousado, pois a sigla estava concebida para apresentar não mais do que carteiras, ou portfólios, de investimentos com promessas de grandes retornos, voltados para alguns fundos sequiosos de boas oportunidades de mercado.

Depois de vários encontros entre os respectivos chanceleres, o Bric diplomático foi oficialmente lançado numa reunião de cúpula realizada em Ecaterimburgo em 2009, mas não atravessou mais do que dois anos no seu formato inicial, passando a incorporar a República da África do Sul, pelas mãos da China, desde 2011. O sucesso de mídia foi enorme, desde essa fase inicial, pois que os países avançados do Ocidente ainda enfrentavam o rescaldo das crises imobiliária, securitária e bancária de 2008, que teve início nos Estados Unidos e logo se propagou para as outras economias de mercado, ao passo que os BRICS, pelo menos a China e a Índia, pareciam imunes às turbulências e mantinham suas taxas de crescimento relativamente satisfatórias. O novo Brics navegava de vento em popa, e já na cúpula de Fortaleza, em 2014, fazia aprovar um banco de fomento a investimentos, o NDB, e um mecanismo de socorro contingente, vagamente similar aos mecanismos de ajuste existentes no FMI: os encontros anuais dos cinco líderes recebiam os holofotes da mídia e choviam as demandas de novos candidatos ao bloco que prometia ultrapassar o PIB do G7 antes da primeira metade do século. Depois disso, a dinâmica econômica do grupo se enfraqueceu.

O curioso é que nessa primeira fase, a Rússia ainda fazia parte de um puxadinho do G7, o G8, formado na fase de transição do socialismo ao capitalismo, nos anos 1990, para facilitar a acomodação da gigantesca e nuclearmente poderosa Rússia – mesmo depois da implosão e fragmentação do império soviético – às novas regras do velho e duro capitalismo. Não apenas isso, como deferência política especial a um grande, mas esfarrapado, “parceiro” da primeira Guerra Fria: na cúpula do G7 em Kananaskis, no Canada, em 2002, a Rússia foi reconhecida como “economia de mercado”, muito antes dela ser aceita no Gatt-OMC, ou sequer ser considerada apta a integrar a OCDE (o que ela não fez até hoje, mesmo tendo sido aceita na OMC em 2015, muito depois da bem mais capitalista China). Mas o fato é que o G8 tinha uma conformação exclusivamente política, e de menor relevância do que a alta agenda econômica e financeira do G7, que continuava se reunindo com os ministros de finanças das sete grandes economias de mercado, sem a contraparte russa.

Essa distinção diminutiva do G8 parecia incomodar o novo líder russo, Vladimir Putin (designado por Boris Iéltsin para sucedê-lo desde 1999), tanto que, num pronunciamento à nação, no início de 2005, ele já declarava que o colapso da União Soviética tinha sido “a maior catástrofe geopolítica do século” e “uma tragédia para os russos”. Essa declaração foi feita quase às vésperas das comemorações do 60. aniversário da vitória final da finada URSS na Segunda Guerra Mundial, oficialmente chamada de “Grande Guerra Patriótica”. Que ela possa ter sido uma “tragédia para os russos” é compreensível, pois que alguns milhões deles ficaram além das fronteiras da nova República Federal da Rússia, que também passou a enfrentar revoltas separatistas, como na Chechênia, selvagem reprimida. Mas, se houve alguma “catástrofe”, ela foi certamente extremamente benéfica para milhões de outros europeus, e muitos habitantes das antigas satrapias da Ásia central, que passaram a dirigir os seus próprios destinos, não sem seguidas interferências do urso russo, sempre temido.

Dois anos depois, dirigindo-se diretamente aos países ocidentais na conferência sobre segurança de Munique, em fevereiro de 2007, Putin alertava duramente os países ocidentais com respeito às preocupações de segurança de seu país ,e já fazia referência ao Bric, então em formação, da seguinte forma:

“O PIB combinado, em paridade de poder de compra, de países como Índia e China já é maior do que o dos Estados Unidos. Um cálculo similar com o PIB dos países do Bric – Brasil, Rússia, Índia e China – ultrapassa o PIB total da UE. E, segundo os especialistas, esse diferencial só vai crescer no futuro“, afirmou Putin na Conferência de Munique sobre Política de Segurança.

O debate que se seguiu a esse discurso franco e contundente de Putin, já assumindo os ares de um novo czar, foi extremamente revelador do espírito com que ele contemplou o ingresso de diversos países vizinhos, ex-integrantes do império soviético, às estruturas políticas e militares da Otan, chegando praticamente às portas de São Petersburgo: a Estônia e a Letônia, rapidamente aceitas, com a Lituânia e vários outros da Europa central e oriental, na organização do tratado do Atlântico Norte. Esse processo continuou moderadamente até que a tentativa da Georgia de aderir à Otan, em 2008, despertou a violenta reação da Rússia, que ocupou partes do seu território setentrional; na verdade, essa iniciativa se devia não à Otan, mas a um referendo realizado em janeiro daquele ano, na Georgia, que revelou que 77% da população era favorável ao ingresso na organização de segurança coletiva.

O caso mais complicado, obviamente, se referia ao segundo maior país da Europa, depois da própria Rússia. A Ucrânia, formalmente independente desde 1991, mas não considerada para adesão à Otan, tinha inclusive firmado com a Rússia, em 1997, um tratado de amizade, cooperação e parceria, pelo qual eram fixados o princípio de uma “parceria estratégica”, o reconhecimento da inviolabilidade das fronteiras existentes, o respeito pela integridade territorial e o compromisso mútuo de não ser usado o território de nenhuma das partes para afetar a segurança da outra. Depois da invasão da Crimeia, em 2014, poucos meses antes da cúpula do BRICS de Fortaleza, a Ucrânia declarou sua intenção de não renovar esse tratado em setembro de 2018. Mas, já imediatamente após a invasão da península, em fevereiro de 2014, os principais países do Ocidente adotaram sanções, ainda que moderadas, contra a Rússia; ela foi expulsa do G8, que voltou ao seu formato original.

Nesse tempo, e desde antes, forças russas já atuavam provocativamente nas províncias separatistas do Donbas, ameaçando, portanto, a integridade territorial da Ucrânia. O Brasil, teoricamente conhecido como possuindo uma diplomacia de estrita adesão à Carta da ONU e ao direito internacional, permaneceu estranhamente à margem do conflito, sem tomar qualquer posição sobre uma das mais graves violações ao princípio onusiano de não interferência nos assuntos internos de outros países. À época, a presidente Dilma Rousseff, não querendo dificultar a vinda de Putin para a cúpula do Brics, evitou, deliberadamente, manifestar qualquer posicionamento oficial do Brasil sobre a flagrante ruptura de uma das cláusulas basilares das relações internacionais, inclusive inscrita no Artigo 4º da CF-1988. Mais adiante, questionada sobre a questão numa reunião do G20 na Austrália, no final de 2014, Dilma disse que não iria se manifestar sobre um “assunto interno” da Ucrânia, como se a invasão de seu território por uma potência estrangeira pudesse ser assim classificada. A Rússia ficou, obviamente, satisfeita com essa estranha neutralidade da parte do Brasil.

A mesma postura, já no governo Bolsonaro, foi adotada em fevereiro de 2022, quando da invasão maciça deslanchada por forças russas a partir da sua fronteira com a Ucrânia, mas também a partir da vizinha Belarus, causando a mais dramática ruptura na paz e na segurança internacionais desde o término da Segunda Guerra Mundial, superando mesmo os conflitos na ex-Iugoslávia, uma federação de povos e religiões diversas, envolvidos em guerras civis. Ainda que condenando formalmente, mas não nominalmente, a Rússia pela invasão, o Brasil de Bolsonaro evitou cuidadosamente responsabilizar diretamente a Rússia pela inaceitável violação dos principais artigos da Carta da ONU. Pouco tempo antes do início da guerra de agressão – já anunciada muitas semanas antes pelo presidente americano Joe Biden – o presidente brasileiro, contra recomendações contrárias insistentes da diplomacia profissional, fez questão de visitar Putin e, na sua presença, declarar-se “solidário” à Rússia. No retorno ao Brasil, declarou que tinha afastado o perigo da guerra: uma semana depois teve início a maior operação de guerra desde os grandes combates da Segunda Guerra, eufemisticamente apelidada por Putin de “operação militar especial”.

A despeito de formalmente seguir a maioria dos membros da ONU, no CSNU, na AGNU e no Conselho de Direitos Humanos, nas resoluções que denunciaram a Rússia por violar dispositivos da Carta, o Brasil evitou acusar diretamente o país agressor: falou em favor de uma “solução pacífica das controvérsias”; recomendou a “cessação de hostilidades” entre as partes, como se estas fossem recíprocas; considerou que se deveria contemplar as “preocupações de segurança das partes”, como se, mais uma vez, estas fossem equivalentes; sobretudo, opôs-se à adoção de sanções – sob a escusa de que elas seriam “unilaterais”, como se o direito de veto estivesse sendo utilizado legitimamente, ou alegando que sanções não contribuiriam para uma “solução ao conflito”; também opôs-se ao fornecimento de armas e outros meios de defesa ao país atacado, para não “provocar maior número de vítimas”, como se a Ucrânia devesse se render ao agressor mais poderoso. Essas foram, basicamente, as posições adotadas pela diplomacia sob o comando de Bolsonaro desde o início do conflito; mas cabe registrar que elas não mudaram fundamentalmente, ou em nada, no governo Lula.

Ao contrário, o candidato Lula chegou a demonstrar uma postura ainda pior, ao acatar velhas e conhecidas posições da maioria da esquerda antiamericana do seu partido, no sentido de proclamar a culpa da Otan no conflito, assim como, de maneira ainda mais inaceitável, a responsabilidade pessoal do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky pela deflagração da guerra. Eleito presidente, ele evitou de tomar posição de maneira explícita sobre essas questões, mas começou a agitar a ideia de um “clube da paz”, que seria proposto por ele ao assumir a presidência. Também reincidiu na esquisitice folclórica ao afirmar uma “sabedoria” de senso comum: “quando um não quer, dois não brigam”. A mesma arenga foi repetida, quando já presidente, ao receber a visita em Brasília do chanceler alemão Olaf Scholz, numa frase que deve ter sido acolhida com estranheza ao redor do mundo. A proposta do “clube da paz” mostrou-se naturalmente natimorta, antes mesmo de sua visita ao presidente Joe Biden. Contudo, o Brasil de Lula continuou opondo-se, como no governo anterior de Bolsonaro, à adoção de sanções ou ao fornecimento de equipamentos bélicos à Ucrânia, na justificativa canhestra que tampouco o fazia em direção da Rússia (como se esta tivesse pedido, como fez, ao contrário, a Ucrânia, recebendo uma negativa de Bolsonaro, mantida sob Lula).

Nessas condições, o que pode pretender Lavrov em sua visita ao Brasil, depois de já ter visitado a África do Sul e de ter combinado com a presidência do país alguns temas da agenda do Brics em sua próxima cúpula, e que chegou até a incluir uma fantástica moeda comum do bloco para os seus intercâmbios comerciais? Certamente vai querer a continuidade da política de “neutralidade” ou de “imparcialidade” do Brasil, no tocante à guerra de agressão que seu país leva adiante de forma criminosa na Ucrânia. O chanceler russo já havia saudado uma inexistente proposta de paz do Brasil para a “solução” do conflito (que nunca chegou a ser apresentada), bem como os 12 pontos apresentados pela China como base para uma discussão a respeito, plano já considerado inconsistente pelos países ocidentais.

Ambas as iniciativas pecam pela absoluta falta de exigência da retirada das tropas russas do território ucraniano, sendo que uma resolução adotada na Assembleia Geral da ONU – portanto, nada mais do que simbólica – requerendo essa mesma premissa, recebeu um pequeno adendo do Brasil pedindo a “cessação de hostilidades”, o que representaria, de fato, o virtual congelamento da ocupação ilegal conduzida pelas tropas russas em 20% do território ucraniano. Não se sabe se os diplomatas brasileiros que apresentaram esse acréscimo coraram de vergonha pela contradição explícita da demanda em relação ao teor da resolução.

Existe a dúvida se Putin comparecerá à cúpula do Brics na África do Sul, pois existe uma ordem de detenção do presidente russo por “crimes de guerra”, feita pelo Tribunal Penal Internacional, de cujo Estatuto de Roma o país africano é membro, o que o obrigaria a deter o dirigente russo e enviá-lo à Haia. Não parece haver esse risco, como não ocorreu quando o antigo ditador sudanês Omar al-Bashir ali compareceu numa reunião africana de cúpula. Mas, certamente, seria um enorme constrangimento pelo menos para o Brasil, para a África do Sul, e, talvez, para a Índia (embora esta não seja parte do TPI). Diplomatas brasileiros ouvidos em off pela imprensa minimizaram a importância do pedido de detenção de Putin pelo TPI, o que pode ser um reconhecimento realista quanto às limitações do TPI (e da CIJ, que não possuem os “dentes” do Conselho de Segurança), mas também já pode significar uma adesão submissa à presumida postura do presidente Lula de evitar causar embaraços ao grande aliado original na formação do Brics, uma das iniciativas das quais parecer orgulhar-se o presidente brasileiro, ao lado do Ibas (bloco político integrando a Índia, o Brasil e a África do Sul) e da Unasul.

Tal postura parece ser exatamente o que Putin gostaria de ter da parte de Lula: uma “neutralidade” que, no plano objetivo, é inteiramente favorável à Rússia. Vai conseguir? Muito provavelmente, pois que o Brasil parece aderir, ainda que discretamente ou não assumidamente, ao tal de “não alinhamento ativo”, inventado por alguns partidários de um “desalinhamento passivo e inativo” em relação à mais grave questão afetando a paz e a segurança internacionais desde décadas. Tal postura, supostamente identificada a um fantasmagórico Sul Global – que se considera ser neutro ou indiferente em face dessa cruel guerra de agressão –, reproduz, em diferentes circunstâncias e em outra dimensão, a falácia do pacifismo dos anos 1930, ou seja, a inação de importantes membros da comunidade internacional em resposta ao ativismo dos expansionistas, o que levou quase toda o planeta ao maior desastre humanitário e civilizatório de toda a história humana.

Seria uma outra maneira, não confessada, de limitar essa cruel guerra de agressão ao contexto exclusivamente europeu, como se a violação da Carta da ONU e das normas mais elementares do Direito Internacional, e como se as transgressões dos tratados humanitários e das próprias leis da guerra fossem um assunto exclusivamente europeu, não universal. A diplomacia brasileira enfrenta aqui o seu mais relevante desafio das últimas décadas, talvez desde sempre: permanecer nessa “neutralidade” hipócrita, de indiferença, que só serve ao agressor, sob risco de negar seus mais solenes compromissos com o Estado de Direito no plano internacional, como já haviam peremptoriamente defendido o Barão do Rio Branco e o delegado Rui Barbosa na segunda conferência da paz da Haia, em 1907. Cem anos depois da morte do grande jurisconsulto baiano, aliás convidado para integrar a Corte Internacional de Justiça em 1923, a abstenção nessa causa representaria mais uma derrota do grande civilista e campeão da Justiça no plano internacional, em sua luta por uma verdadeira postura dos “neutros” em caso de crimes de guerra.

Revista Crusoé