sábado, dezembro 24, 2022

Orçamento 2.0




Emendas Pix vão preencher o espaço deixado pelas emendas secretas. Elas também têm pouca transparência e não garantem gastos públicos de boa qualidade. 

Por Natália Lázaro (foto)

Até o começo desta semana, as “emendas Pix” eram as primas pobres das emendas do relator. Com a declaração de inconstitucionalidade dessas últimas pelo STF, no entanto, as emendas Pix – ou “transferências especiais”, no linguajar técnico – vão se tornar as estrelas do baile. Se o seu uso não for melhor regulamentado, acabarão dando origem a um novo orçamento secreto.

As emendas Pix são, na verdade, uma fatia das emendas individuais a que todos os parlamentares têm direito – e cuja execução é obrigatória. Sempre se pode saber quem é autor de uma emenda desse tipo, ao contrário do que acontecia com as emendas do relator, da maneira vigarista como vinham sendo utilizadas. O problema das emendas Pix é outro: os recursos não estão vinculados a nenhuma finalidade previamente estabelecida – a nenhum programa ou convênio do governo federal. Como se fosse um Pix, o dinheiro das transferências especiais cai diretamente no caixa do estado ou município que o parlamentar decidiu beneficiar, e os gestores locais podem gastá-lo como bem entenderem.

O fim das emendas do relator não significa que os parlamentares perderam os R$ 19,4 bilhões que estavam reservados para elas no Orçamento de 2023. Nas negociações sobre a PEC da Gastança, aprovada pelo Congresso nesta quarta-feira, 21, ficou decidido que metade daquele valor vai para os ministérios do governo Lula, mas o Congresso poderá “influir” na sua alocação entre programas federais. A outra metade vai engordar as emendas individuais e, por consequência, a fração delas destinada às transferências especiais.

O valor reservado para emendas Pix já vinha crescendo ao longo dos anos. Em 2021, R$ 621 milhões irrigaram as bases eleitorais de deputados e senadores por meio delas. Em 2022, foram quase seis vezes mais: R$ 3,3 bilhões. O montante previsto para emendas individuais em 2023 era de R$ 11,7 bilhões, sendo R$ 3,7 bilhões para transferências especiais. Vai haver uma explosão quando o Orçamento for revisto. A dotação para emendas individuais passará a ser de R$ 21,2 bilhões e, se a proporção anterior for mantida, mais de R$ 6 bilhões ficarão disponíveis para emendas Pix.

Há uma discussão sobre quem deveria fiscalizar a aplicação dos recursos das emendas Pix. Em tese, esse papel cabe aos Tribunais de Contas estaduais e municipais. Neste ano, a Controladoria Geral da União (CGU) decidiu verificar, de maneira amostral, o destino que foi dado a emendas Pix liberadas em 2020. Em poucos casos foi possível seguir até o final o caminho dos recursos. Quando isso aconteceu, foram detectadas inconsistências na aquisição de bens e serviços. Em outras palavras, as emendas Pix também são opacas e não garantem um gasto público de boa qualidade.

Para o economista Gil Castello Branco, fundador da entidade Contas Abertas, as transferências especiais “são cheques em branco, dinheiro pulverizado em gastos de pouca eficiência”.

“A falta de parâmetros técnicos e sócio-econômicos distorce as políticas públicas, amplia as desigualdades regionais e municipais e facilita o surgimento de casos de corrupção”, diz o especialista.

A visão do advogado Ricardo Barreto é semelhante: “Se não existe exigência de que os recursos federais sejam aplicados em determinadas áreas ou finalidades, as políticas públicas executadas em âmbito nacional se desarticulam, o que produz danos para o planejamento de longo prazo.”

A PEC que deu origem às transferências especiais foi aprovada em 2019 e sua autora é a deputada federal Gleisi Hoffmann, presidente do PT. Segundo um levantamento realizado pelo Contas Abertas, foi justamente o PT o partido que mais utilizou a ferramenta em seus três anos de existência, com desembolso de R$ 268 milhões. Em seguida vêm o PP, com R$ 266 milhões e o PSD, com quase R$ 263 milhões.

Parlamentares petistas dizem que as transferências especiais são importantes para partidos de oposição – situação em que eles se encontravam durante o governo Bolsonaro –, pois evita que tenham as mãos atadas pelo governo.

A ausência de burocracia é uma virtude que parlamentares à esquerda e à direita atribuem às emendas Pix. O deputado federal Evair de Melo (PP-ES) diz que ficou reticente a princípio, mas depois enxergou um “grande avanço” nas transferências. “Desburocratiza, simplifica o processo e chega mais rápido ao destino”, diz ele. “A liberação de uma emenda convencional, para uma obra, por exemplo, pode levar quatro anos. Nessa altura, a obra já custa o dobro. Em convênios, às vezes a prefeitura não consegue dar suas contrapartidas e com isso a emenda se perde.”

Kim Kataguiri (União Brasil-SP) e Alessandro Vieira (PSDB-SE) também destacam a agilidade das emendas Pix. “A vantagem é que o recurso chega diretamente ao destino, sem que nenhum centavo se perca no caminho devido a atrasos com trâmites burocráticos”, diz Kataguiri. Os dois reconhecem, no entanto, que faltam controles para garantir que os recursos sejam bem aplicados.

Essa é, com certeza, uma visão benevolente. Além da falta de controles adequados, que terão de ser instituídos, repasses de recursos da União no formato das emendas Pix criam uma relação de clientelismo entre estados e municípios e os seus representantes no Congresso Nacional. Esmolas desse tipo não seriam necessárias se a distribuição da receita tributária entre os entes da federação fosse mais equilibrada. Para que isso aconteça, é preciso uma reforma tributária. O PT, que propôs a criação das transferências especiais, promete levar adiante essa reforma no primeiro ano do governo Lula. A conferir.

“As transferências especiais, cujo volume lamentavelmente deverá ser ampliado de modo significativo em 2023, representam um desastre institucional. Revelam um estágio de desorganização institucional e federativa que precisa ser enfrentado com urgência por toda a sociedade”, diz o advogado Ricardo Barreto.

Revista Crusoé