A morte de Olavo de Carvalho permite duas análises políticas. A primeira é medir a influência do autor no bolsonarismo e seus seguidores. Haverá especialistas mais habilitados do que eu para essa tarefa.
Por João Pereira Coutinho (foto)
A segunda, mais interessante, é afirmar que Olavo não passa de um detalhe. Ele interessa como sintoma, e não como causa, da divisão que hoje existe dentro da direita.
Essa divisão não é nova. Ela faz parte da própria história do pensamento conservador desde a Revolução Francesa. Será que o liberalismo político, com sua ênfase na autonomia dos indivíduos e na limitação do poder, pode ser acomodado pelas sociedades tradicionais do Ocidente? Conservadores liberais responderam de uma forma; conservadores reacionários responderam de outra.
Os primeiros, depois de uma crítica vigorosa aos excessos "racionalistas" da revolução, pretenderam conservar uma tradição que já era liberal. Isso é visível em autores de língua inglesa, como Edmund Burke, para quem a Revolução Francesa era uma ameaça às conquistas de uma outra revolução — a Revolução Inglesa de 1688, tida por "Gloriosa" precisamente porque depôs um rei tirânico (James 2º) e estabeleceu a supremacia do Parlamento.
Os segundos marcharam igualmente contra os princípios da Revolução Francesa. Mas não o fizeram em nome de um patrimônio liberal, que aliás não existia. Quando Joseph de Maistre, um contemporâneo de Burke, exortava os franceses à contrarrevolução, o objetivo era claro: restaurar o absolutismo régio.
Essa divisão genética nunca abandonou as diferentes direitas, que ora acomodavam a modernidade política, ora a recusavam como uma ameaça existencial aos valores tradicionalistas.
Como lembra Edmund Fawcett na sua recente história do conservadorismo ("Conservatism: The Fight for a Tradition"), essas oscilações dependeram sempre de contextos históricos particulares: em épocas de estabilidade, como antes de 1914 ou depois de 1945, a direita liberal teve a sua ascendência e foi instrumental na construção da democracia.
Em épocas de instabilidade, como sucedeu entre as duas guerras mundiais, a "direita recalcitrante", expressão de Fawcett, procurou reverter os ganhos do liberalismo pela defesa de posições reacionárias e autoritárias que, em vários países da Europa, terminaram no desastre conhecido.
Vivemos novamente em crise. Porque vivemos na sombra de várias crises –políticas, econômicas, financeiras – desde a virada do milênio. Sem surpresa, a "nova direita", que é mais velha do que se imagina, volta a questionar o "consenso liberal" e as suas supostas perversões — individualismo, materialismo, globalismo, livre circulação etc.
São incontáveis os livros da "nova direita" que decretam a morte do liberalismo –ou, mais simpaticamente, a necessidade de vivermos numa era pós-liberal.
O raciocínio, tal como apresentado numa importantíssima carta aberta publicada pela revista First Things, é acabar com o "consenso morto" que prevaleceu na segunda metade do século 20 entre o conservadorismo e o liberalismo.
Quando o inimigo era comum –a União Soviética–, esse consenso fazia sentido. Hoje? Não faz. É preciso regressar às "verdades permanentes" —família, religião, comunidade, nação etc— que o liberalismo ameaça e destrói.
Os temas da "nova direita" tornaram-se bastante audíveis nos Estados Unidos. E também no Brasil, onde Olavo de Carvalho foi um dos seus principais divulgadores. Essas mensagens só tiveram sucesso porque havia uma crise política, econômica e social.
É um caminho ruinoso e sem futuro. Porque a "nova direita" comete um erro de base: a modernidade política não é uma opção; é um fato histórico. Ela é o resultado de um fenômeno irreversível – a experiência da individualidade – que emergiu no mundo pós-medieval com as suas demandas próprias.
Entre elas, está a vontade de vivermos as nossas vidas e de deixarmos os outros viverem as vidas deles, sem que exista um poder central que determine uma única moralidade pública. Em política, a nação não está acima de tudo nem Deus está acima de todos.
Isso não significa que as tradições sejam descartáveis. Pelo contrário: elas existem no contexto do pluralismo intrínseco das sociedades, para que possamos livremente escolhê-las. Como lembrava Michael Oakeshott, a relação que temos com as tradições não é a mesma atitude reverencial que os povos primitivos têm com os seus totens sagrados.
Uma tradição é como uma língua: ela pode ser aprendida e usada. Mas em nenhum momento o conhecimento de uma língua determina o que devemos dizer ou pensar.
O jogo mudou. Razão pela qual, ainda segundo Oakeshott, a discussão central da história moderna não é entre esquerda e direita ou conservadores e progressistas.
É entre indivíduos e anti-indivíduos; é entre aqueles que aceitam o desafio da individualidade e aqueles que o recusam, procurando abrigo nas "tribos" da nação, da raça, do gênero ou de qualquer outra identidade coletiva.
Olavo de Carvalho foi esse abrigo. Mas, na hora da morte, é importante lembrar que há mais vida para lá da caverna.
Folha de São Paulo