Os bajuladores da ditadura cubana pensam e fazem parecer que Milanés seguia sendo como eles.
Por Leonardo Coutinho (foto)
No dia da morte do cantor cubano Pablo Milanés, o ditador de Cuba, Miguel Díaz-Canel, deixou uma mensagem de condolência no Twitter. O texto é frio. Díaz-Canel fala de “desaparecimento físico” e de uma “voz inseparável de nossa geração”. A razão do tom protocolar é simples. Milanés, que por décadas foi um apoiador do regime ditatorial da ilha, atuando como um instrumento de soft power por meio de suas músicas (algumas delas sensacionais), há pelo menos dez anos era um crítico duro do regime.
No ano passado, quando os agentes da repressão metiam a borduna e prendiam manifestantes nas ruas de Cuba, Milanés foi às redes sociais e deixou o seu recado. Deixou sua solidariedade para quem apanhava nas ruas por pedir liberdade. Quase ninguém prestou atenção nele.
Dez anos antes, em 2011, Milanés já havia marcado de forma definitiva o seu rompimento com a ditadura. Em uma carta-aberta, criticou as agressões físicas às mulheres do Movimento Damas de Branco – que defende os direitos humanos e pede a libertação dos presos políticos em Cuba –, a censura à imprensa e o silêncio dos intelectuais de seu país frente ao monstro totalitário em que se transformou o regime.
Milanés demorou muito para enxergar o que reluzia mais do que o sol. Muitíssimo, mas percebeu e expressou seu desalento. Quase ninguém prestou atenção nele.
Criticado por artistas que ainda seguem bajulando a ditadura cubana, Milanés endureceu sem perder a ternura: “Meus 53 anos de militância revolucionária me concedem o direito, que muito poucos exercem em Cuba, de me manifestar com liberdade, a mesma exigida por meus princípios, sem nenhum compromisso (…) com os dirigentes cubanos, os quais admirei e respeitei; mas, não são deuses, nem eu sou fanático, e quando sinto que posso fazer uma repreensão e dizer não, digo sem medo e sem reservas”.
Milanés morreu em Madri e foi sepultado por lá. Isso não é apenas um detalhe. Ele vivia há anos na Espanha, tendo sido transformado em uma espécie de “exilado”. Mesmo sendo um homem de esquerda dura, ele foi cancelado por não ter aceitado mais se comportar como um cão.
Díaz-Canel foi protocolar com a morte de Milanés, mas sua matilha fez o serviço de sequestrar a biografia de Milanés e reposicioná-la em seu favor. Tal como ladrões de túmulo, líderes bolivarianos e seus xerimbabos agiram rápido. O ex-presidente da Bolívia e cocaleiro Evo Morales e o venezuelano Nicolás Maduro engrossaram o uivo revolucionário. Atrás deles, vieram os seguidores de sempre. Os brasileiros Randolfe Rodrigues e Guilherme Boulos, o chavista Ernesto Villegas e o ex-líder das Farc Rodrigo Lodoño.
Os bajuladores da ditadura cubana que pensam e fazem parecer que Milanés seguia sendo como eles.
Milanés não foi o primeiro e não será o último artista a experimentar o expurgo por criticar a “revolução”. Na Nicarágua de Daniel Ortega, o padre e poeta Ernesto Cardenal, um dos símbolos do sandinismo, se transformou em um pária. Em seu velório, seu caixão quase foi violado pelos manifestantes em fúria. A argentina Mercedes Sosa enfrentou em vida a acusação de ser sionista, como se sua recusa em não fazer boicote a Israel e sua simpatia pelo país fossem um gesto de traição à revolução.
Para quem não liga o nome à pessoa, Mercedes foi possivelmente a artista que mais incorporou o papel de ser a voz da unidade latino-americana e expressou elementos da cultura e das aspirações por democracia e liberdade na região – embora os conceitos de “democracia” e “liberdade” tenham sido sequestrados pela esquerda, que os tratava como algo que não seria possível de alcançar sem a revolução e o socialismo.
Milanés morreu longe de sua terra. Morreu achincalhado por muitos companheiros de jornada. Morreu sem ver sua Cuba livre. Ao que tudo indica, profanarão o seu legado e escolhas, transformando-o em mais uma peça de museu. Do museu das ditaduras.
Gazeta do Povo (PR)