domingo, outubro 30, 2022

Amanhã são décadas




Recolocar o país nos antigos trilhos já seria muito atualmente, mas seguramente insuficiente diante dos desafios do porvir

Por Ricardo Henriques (foto)

Vivemos uma encruzilhada sobre o projeto de futuro que queremos para o país. Como disse Nelson Rodrigues: “Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos”. Pois desenvolvimento também não se improvisa, mas tampouco pode ser obra de séculos. Desenvolvimento requer ciência, conhecimento de práticas, governança política e institucional, e intencionalidade no desenho do projeto de futuro.

Deve ser uma tarefa desta geração para podermos sonhar e projetar o Brasil do futuro, ousado, ambicioso, realista e democrático.

No entanto, as políticas públicas nas áreas de Meio Ambiente, Educação, Saúde, Assistência Social, Cultura, Ciência e Tecnologia se encontram, nos últimos quatro anos, em um interregno. Assoladas pela pandemia e pela inoperância do governo federal, regrediram em compasso com o aumento da pobreza, da fome e do desemprego.

Não foi só retrocesso, mas também desmonte das políticas públicas com a intenção de reduzir a participação e o diálogo, de se desvencilhar da ciência e das evidências empíricas e de impor uma ótica não republicana, a favor do império de valores, costumes e opiniões de segmentos específicos da sociedade.

Neste domingo, optaremos entre seguir com esse caminho que flerta com o autoritarismo ou retomarmos a rota iniciada desde a redemocratização, em especial nos períodos em que controlamos a inflação e, em seguida, retiramos 25 milhões de pessoas da pobreza.

Existe uma oportunidade e precisamos aproveitá-la, do contrário, uma parcela relevante da sociedade poderá tornar-se estruturalmente pobre e excluída diante da transição demográfica.

Nessa direção, do ponto de vista das políticas públicas, é necessário restabelecer o pacto federativo, com uma federação mais democrática, caracterizada pela ampliação de programas governamentais eficazes e baseados em evidências científicas, bem desenhados e com controle de consequências.

Adicionalmente, investir na qualificação da capacidade estatal da União, dos estados e dos municípios com monitoramento e avaliação das políticas públicas, disponibilização de maior e melhor financiamento federal e alinhamento estratégico entre as três esferas de governo.

Para tanto, é preciso vencer a dicotomia, sustentada nos últimos quatro anos, entre centralizar ou descentralizar políticas públicas. O governo federal tentou desresponsabilizar-se no jogo de coordenação e cooperação intergovernamental através de um posicionamento autocrático com os demais poderes constitucionais e conflituoso com estados e municípios, dando origem a um vácuo chamado de Federalismo Bolsonarista, conceito cunhado por Fernando Abrucio e coautores, em artigo de 2020.

As transformações estruturais a serem colocadas em movimento necessitam também reconhecer que a visão que sustenta o desmonte das políticas públicas e seus perversos efeitos sobre os mais vulneráveis tem base social de apoio, derivada de alianças que mobilizam contradições da sociedade, ressentimentos, e expectativas reacionárias sobre costumes, família e religião, entre outros.

Mais ainda, a praça pública das redes sociais seguirá alimentada por usos deturpados e manipuladores dos algoritmos, desinformação, cancelamentos e ativa arena de ódios.

Nesse contexto, podemos projetar nos médio e longo prazos a importância de uma agenda comum de retomada de espaços para o diálogo em defesa da democracia. A amplitude do espectro político de todos os envolvidos foi tamanha que oito ex-presidenciáveis chegaram a reunir-se em campanha, renunciando às diferenças em prol da contenção de delírios autoritários presentes no Palácio do Planalto.

Aqui abre-se a possibilidade do necessário caminho de concertação nacional que mobilize o amplo espectro do campo democrático a serviço da democracia e de um projeto de desenvolvimento sustentável com justiça social.

A questão chave é: recolocar o país nos antigos trilhos já seria muito atualmente, mas seguramente insuficiente diante dos desafios do porvir. Distinto da evolução contínua e lenta do período pós Constituição de 1988, temos apenas 20 anos para fugir da armadilha da renda média e integrar a primeira liga dos países desenvolvidos nesta janela demográfica.

Assim, precisamos, simultaneamente, produzir novos trilhos e recolocar o trem em rota — agora um trem de alta velocidade que acelere as transformações socioambientais em direção à fronteira do conhecimento e convergindo ao ritmo dos países desenvolvidos.

Para fazê-lo, no entanto, será preciso um projeto de futuro ambicioso capaz de fazer do dia de amanhã a abertura de um novo horizonte, e não um passo em direção a futuras décadas perdidas.

O Globo