Por Hubert Alquéres (foto)
A vasta literatura sobre os problemas crônicos e estruturais do nosso sistema educacional – entre os quais a baixa qualidade do ensino – findou por ter um efeito colateral. Nunca foi seu objetivo mas, involuntariamente, contribuiu para disseminar o senso comum de que a educação brasileira é um cenário de terra arrasada.
A leitura exageradamente pessimista disseminou a ideia de que a única maneira de pôr a educação brasileira nos eixos seria por meio de uma “revolução”, ou seja, uma ruptura com tudo o que tem sido feito. Desprezando assim o enorme esforço nacional das últimas três décadas, responsáveis por avanços significativos no ensino básico.
O livro “Pontos fora da curva” (FGV Editora, 2022) de Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos pela Educação, quebra esse paradigma. Em vez de focar no que não tem sido feito, foca no que já foi feito. O ponto de partida de sua análise foram as experiências exitosas do Programa de Alfabetização na Idade Certa do Ceará e do Ensino Médio Integral de Pernambuco. A escolha desses dois programas se deu pelo fato deles serem emblemáticos do ingresso da educação brasileira na chamada terceira geração das reformas estruturais.
Reformas como essas são o que há hoje de mais avançado no mundo em matéria educacional. Foram iniciadas nos países desenvolvidos na primeira década do século XXI e também são chamadas de “reformas efetivas”, por combinarem qualidade com equidade, cumprindo os objetivos de acesso à escola, permanência e aprendizagem.
Ceará e Pernambuco deram saltos significativos no Ideb (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico), graças aos seus programas. Mas o dado alvissareiro é o fato de já não serem mais “pontos fora da curva”. O sucesso do Ceará estimulou mais doze estados a implantarem a alfabetização na idade certa, entre os quais São Paulo. Isso foi decisivo para o Estado liderar o ranking do Ideb, nos 5º e 9º anos das escolas públicas do ensino fundamental. A experiência pioneira de ensino integral de Pernambuco também ganhou tração em estados com redes de ensino médio com grandes complexidades, como são os casos de São Paulo e Minas Gerais.
A análise de Olavo Nogueira é uma enorme contribuição para o resgate do quanto já foi feito no terreno educacional. Em vez de – como afirmou o pesquisador Fernando Abrucio, da FGV, na apresentação do livro -, estimular o complexo de vira-lata em termos educacionais, demonstra que nunca houve tantas mudanças positivas na educação brasileira como no período de 1988 a 2018. Nesses trinta anos, o Brasil universalizou o ensino fundamental, expandiu o número de concluintes do ensino médio, expandiu, de forma inédita, o ensino infantil.
Além disso, “houve muito financiamento com o FUNDEF e o FUNDEB, ampliação e descentralização municipalista para captar os alunos que as redes estaduais não alcançavam, criação de modelos de avaliação dos resultados educacionais, maior qualificação de professores e a construção de carreiras docentes profissionalizadas. E o surgimento de inovações nas políticas educacionais subnacionais”.
A Constituição de 1988 foi fundamental para tais avanços ao definir a educação como um direito. Mas, em especial, o livro valoriza os anos 90 como uma década virtuosa em matéria de reformas educacionais.
No espaço curto de dez anos foram implementadas a primeira e a segunda geração de reformas.
A primeira construiu os pilares para o ensino de massas, praticamente deixando para trás a exclusão das crianças entre 4 e 17 anos. Inicia também um movimento de fortes investimentos na educação, propiciando a ampliação física da rede pública com construção de escolas para absorver o novo contingente de alunos e possibilita melhoria salarial dos professores.
Tais saltos permitiram ao Brasil ingressar, ainda nos anos 90, na segunda geração de reformas, com a definição dos parâmetros curriculares nacional e, principalmente, a criação de um robusto sistema de avaliação da aprendizagem em larga escala, o SAEB. O grande mérito da década seguinte foi dar continuidade a tais avanços e até ampliá-los, como aconteceu com o sucedâneo do Fundef: o Fundeb.
Para o autor, essa trajetória ficou paralisada no período 2010-2016, em decorrência da alta rotatividade no MEC. Foram sete ministros da Educação em seis anos. Isso explica, em grande medida, o atraso do Brasil em relação aos países desenvolvidos na implementação das reformas de terceira geração. O ímpeto reformista foi retomado em 2017/2018, com a definição da Base Nacional Comum Curricular, da Reforma do Ensino Médio e com a aprovação da Emenda Constitucional que tornou o Fundeb permanente.
As reformas nas suas três gerações devem ser vistas como parte de um processo longo e contínuo, implementadas não por meio de rupturas radicais, mas de forma incremental. Se sua segunda onda pode ser definida como a reformas “hard”, as da terceira geração devem ser entendidas “soft”. Na realidade do ensino básico brasileiro, no qual existem 140 mil escolas públicas, ganham protagonismo os governos subnacionais, especialmente na última onda das reformas.
A terceira onda foca mais no como fazer, priorizando a colaboração das escolas, secretarias, qualificação de professores e diretores e no aprimoramento da relação entre formulação e implementação. Não há uma reforma mágica, uma bala de prata da Educação. Para lograr êxito, as reformas devem ter medidas articuladas dentro de uma visão sistêmica. A experiência concreta do Ceará e Pernambuco mostram que seu sucesso decorre muito do fato de serem efetivadas por meio de uma descentralização coordenada.
A história da educação brasileira não é constituída só pelos últimos trinta anos. Há uma herança pesada de quase dois séculos que cobra seu preço e incide sobre os tempos atuais. Mas reduzi-la a um desastre completo, como se não tivéssemos nada a aprender com a experiência, é um grande equívoco. Talvez a grande contribuição do livro “Pontos fora da curva” seja a desconstrução desse mito. Felizmente, há muitos pontos fora da curva, merecedores de serem comemorados.
Jornal Metrópoles