sábado, setembro 24, 2022

A crônica de uma eleição que não acabou




Pleito de 2018 e 2022 são diferentes, mas há similaridades

Por César Felício (foto)

Há praticamente quatro anos, a edição deste jornal no dia seguinte à eleição registrava: Bolsonaro questionava o resultado eleitoral e Fernando Haddad, o então candidato petista, anunciava que buscaria uma frente ampla.

A similaridade do quadro atual com 2018, quando tanta coisa mudou no Brasil desde então, mostra que essencialmente os dilemas e estratégias do petismo e do bolsonarismo seguem os mesmos.

O PT sabe que para chegar e permanecer no poder precisa pactuar com forças de fora da esquerda. Ninguém no partido soube fazer isso, a não ser o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Haddad em 2018 esteve muito longe de conseguir.

Lula saiu da cadeia com um discurso conciliador e depois durante muitos meses pareceu jogar parado. Fez um movimento importante, ao trazer Geraldo Alckmin para seu redil rendido, sem nenhuma condição, mimetizando um radicalismo que nunca teve. Ainda assim, Alckmin na chapa representou uma inflexão importante: o ex-presidente escolheu como vice um político que tem estatura para substitui-lo em caso de um impeachment, por exemplo.

Era um sinal de que Lula não pretendia ultrapassar os limites que a governabilidade lhe permite. Lula foi recentemente comparado pela emedebista Simone Tebet com Juan Domingo Perón, da Argentina. Ressalte-se a diferença: em 1973 Perón descartou ter como companheiro de chapa o moderado Ricardo Balbin, da União Cívica Radical. Escolheu a mulher, Isabelita. Lula casou-se com Janja, mas não a colocou na chapa. A falta de preocupação de Perón em construir uma governabilidade mais ampla foi decisiva para a hecatombe dos anos 70 na Argentina.

Os outros passos de Lula estão se tornando evidentes agora: Henrique Meirelles já ingressa na rede de apoios trazendo uma agenda. A ruralistas no Canal Rural, Lula mostrou-se aberto ao agronegócio. Marina Silva encerrou com ele um divórcio político de 13 anos. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, aos 91 anos, sentiu-se motivado a soltar um documento genérico em defesa da democracia às vésperas da eleição. Não o fez há quatro anos.

Do outro lado, o presidente Jair Bolsonaro tornou-se o candidato de um partido grande, com o apoio de outros partidos grandes, irmanado com o Centrão, com o seu governo envolvido em escândalos de corrupção, muito dinheiro e muita infraestrutura, exatamente como diversos outros políticos na história do Brasil.

A nota dissonante que o une a toda sua história de vida é o discurso antidemocrático, em que o desmerecimento do próprio instrumento maior da democracia, o voto, é uma peça central. Bolsonaro nos anos 90 foi um admirador de Hugo Chávez pela forma, e não pelo conteúdo do venezuelano. Fascinava-o a história de um militar que usava as ferramentas do sistema para implodir o próprio sistema.

Ao questionar a alma da democracia, Bolsonaro também mira na estrutura de independência dos três Poderes e na de pesos e contrapesos. Já era assim em meados de outubro de 2018, quando veio à tona um vídeo do filho do então candidato, Eduardo Bolsonaro, falando que para fechar o Supremo bastava um cabo e um soldado. O pai fez uma repreensão protocolar, mas na mesma ocasião surgiram propostas no seio do bolsonarismo cogitando aumentar a composição do Supremo de 11 para 21 integrantes, uma forma de tomar o controle da Suprema Corte. Ficou claro ali, inclusive para o próprio Supremo, que enfraquecer o Judiciário seria uma de suas metas na Presidência.

Neste conflito entre os Poderes, é bom deixar claro, o Supremo foi acima de tudo reativo. Quem partiu para a guerra foi Bolsonaro, desde antes de sua eleição.

Assim como em 2018, o terceiro colocado dessa eleição tende a ser o ex-governador cearense Ciro Gomes do PDT. Mas repetir o terceiro lugar, mesmo com votação similar à que obteve na ocasião, não o colocará em um ponto neutro.

Pela primeira vez o pedetista deverá ser derrotado no Ceará em seu Estado. Seu apoiado, o ex-prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio, não deve nem sequer ir ao segundo turno. As críticas a Ciro se avolumam dentro do próprio partido. Uma de suas correligionárias, Cidinha Campos, no Rio de Janeiro, chegou a dizer que ele tende a se transformar no “Eymael da esquerda”. Sua família não concorda com sua estratégia na disputa da eleição cearense.

Ao fim da jornada eleitoral, Ciro parece só ter dois objetivos a conquistar: permanecer em terceiro lugar e impedir que a eleição presidencial se resolva no primeiro turno. A falha em qualquer um destes dois objetivos poderá representar a sua sepultura política.

Há quatro anos, o insucesso de Ciro em forjar alianças foi fatal para seu projeto eleitoral. Iniciou aquela corrida de forma ambiciosa, articulando para ter um petista como seu candidato a vice. Nos meses seguintes, alternou flertes com o PSB e com o PP de Ciro Nogueira. Terminou sozinho. Este ano, Ciro nem ao menos tentou alianças.

Simone Tebet é a única dos quatro primeiros que nunca disputou a Presidência da República. Seu ingresso na corrida presidencial poupou-a de tentar uma reeleição difícil no Mato Grosso do Sul.

A aliança com o PSDB foi um dos fatos surpreendentes da corrida eleitoral. Só se tornou possível graças à impressionante capacidade do PSDB em se sabotar. A divisão entre os tucanos de São Paulo e os de Minas Gerais é histórica e assombra o partido desde 1998, mas o que aconteceu entre 2021 e 2022 beirou o surrealismo. O ex-governador de São Paulo João Doria venceu uma contestada prévia indispondo-se com absolutamente toda a cúpula do partido.

Conseguiu se indispor também com os eleitores do seu Estado, mesmo tendo feito uma administração com conquistas históricas, a mais notável das quais a sua atuação durante a pandemia de covid-19 para garantir a imunização da população. A auto-incineração de Doria há de ser estudada por cronistas no futuro. Pode deixar ainda como legado o fim da mais longa hegemonia regional do Brasil.

Valor Econômico