sábado, agosto 27, 2022

Constituição proíbe esta “guerra santa” que Bolsonaro usa como instrumento eleitoral

Publicado em 27 de agosto de 2022 por Tribuna da Internet

Michelle chama Bolsonaro de novo “Messias” e ele aceita…

Demétrio Magnoli
Folha

Michelle Bolsonaro proclamou que o Palácio do Planalto era “um lugar consagrado a demônios” e liderou um culto evangélico na sede do governo. Jair, seu marido que ainda finge governar, isentou os pastores de contribuição previdenciária, violando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei e inaugurando uma via expressa para negócios camuflados de religião. São atos tão anticonstitucionais quanto pregar o fechamento do STF. Mas funcionam.

Sondagem do Datafolha confirma a larga dianteira de Bolsonaro entre os eleitores evangélicos. Mesmo na faixa dos mais pobres, o presidente empata com Lula, em resultado contrastante com o do conjunto do eleitorado.

EM NOME DE DEUS – A “guerra santa” é o único terreno favorável ao golpista que ocupa o Planalto. Lula, Ciro e Simone Tebet não ousam formular a resposta certa à armadilha político-religiosa.

Tebet participou da Marcha para Jesus, em São Paulo, veiculando a mensagem de que também caminha com Deus. Lula convocou um pastor evangélico para viajar com ele e produzir conteúdo de campanha destinados a afastar os fiéis da “bolha bolsonarista”.

Mais: apesar de criticar a “guerra santa”, proclamou que “Bolsonaro usa Deus e Deus usa o Lula”. A disputa por Deus serve, exclusivamente, para normalizar a cruzada bolsonarista.

CRÍTICA AOS FIEIS – Lula não deixou de defender a laicidade estatal. Explicou que não é “candidato de uma facção religiosa”, rejeitou estabelecer “rivalidade entre as religiões” e enfatizou o lugar da religião “é para cuidar da nossa fé, da nossa espiritualidade, não para fazer política”. Contudo, atestando sua perplexidade diante do tema, insinuou uma crítica descabida aos fiéis:

“Quando quero falar com Deus, não preciso ter padre ou pastores; posso me trancar no meu quarto e conversar com Deus quantas horas quiser”.

Ciro foi à raiz do problema, associando a proteção da liberdade religiosa ao Estado laico e a manipulação da religiosidade ao fundamentalismo autoritário. Mesmo assim, não conseguiu sair da defensiva.

FORA DA LEI – O artigo 19 da Constituição veda aos governos federal, estaduais ou municipais “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”. A determinação dupla está deliberadamente expressa numa única sentença.

Quando o Estado alia-se a uma denominação religiosa ou igreja, discrimina contra todas as outras, violando a liberdade de religião. É precisamente isto que faz o governo Bolsonaro, sem ser incomodado pelo Ministério Público ou pelo Congresso.

A política pertence à esfera pública; a religião, à esfera privada. Só o Estado sem religião propicia a liberdade religiosa às mais diversas crenças. Os fiéis de todas as religiões, inclusive evangélicos, são capazes de entender a encruzilhada — com a condição de que os candidatos assumam, nítida e ofensivamente, o discurso da laicidade.

NOME EM VÃO… – O tema pode ser abordado na linguagem da religião: “Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão”.

Pode, ainda, ser traduzido no idioma da política: todas as igrejas têm os mesmos direitos – e, por isso, o governo está proibido de interferir no domínio da religião. No lugar de marchar em procissões ou participar de cultos, os adversários da “guerra santa” precisariam mobilizar lideranças religiosas para explicar o valor da laicidade estatal.

A política identitária está na moda, pela direita e pela esquerda. “Evangélico vota em evangélico”; “negro vota em negro” – inexiste diferença de natureza entre a proposição bolsonarista e a racialista. A distinção encontra-se, porém, na eficácia. A bandeira racialista circula numa bolha quase irrelevante de ativistas profissionais. Já o estandarte da “guerra santa” tem impacto nacional. É hora de confrontá-lo.