terça-feira, agosto 30, 2022

A política do demônio




Não estaríamos diante de um processo eleitoral normal, mas de uma cruzada religiosa, uma encruzilhada que a todos deveria aterrorizar.

Por Denis Lerrer Rosenfield* (foto)

Chegasse um marciano ao Brasil, ficaria certamente confuso, se não espantado, com narrativas político-religiosas do casal presidencial, dirigidas ao casal opositor mais forte e por ele contestadas. Primeiro, ficaria surpreso pelo uso indiscriminado da palavra demônio, como se estivéssemos tratando de pessoas reais, numa espécie de cruzada religiosa. Seria a luta dos bons contra os maus, de anjos contra demônios, uns representando a verdadeira religião, os outros, a falsa. Estranharia, segundo, que pouco se fala de soluções, ideias e propostas para o País, como a fome, a alta inflação dos alimentos, a irresponsabilidade fiscal do atual governo, que só procura dar benesses a seus apaniguados, frequentemente sob a forma das mais diferentes emendas parlamentares. Falta dinheiro de um lado, sobra de outro.

Provavelmente, seria ele tentado a dizer que se trata de um país de malucos, o que talvez fosse um juízo sensato diante deste manicômio em que se tornou a política brasileira. Se se tratasse de uma encenação de bruxos e demônios, certamente acharia mais interessante um filme de Harry Potter, com bons atores e boas atuações, algo muito diferente do que ocorre aqui, com atores deploráveis. Acharia que o mundo da ficção seria mais estimulante que a política ficcional atual, com a diferença de que essa é bem real. Nem conseguem fingir direito atos de compunção, que parecem francamente grotescos. É como se a cena brasileira tivesse se tornado uma história do capeta. Contudo, até essa comparação seria inapropriada, pois o capeta é muito mais esperto.

O pano de fundo de tal encenação político-demoníaca consiste na captura do voto evangélico, em detrimento manifesto, por exemplo, de religiões e cultos de origem africana, tratados com o maior desprezo. Na era da tolerância e de regimes políticos laicos, que fizeram a separação entre Igreja e Estado, volta-se a uma mistura extremamente perniciosa, que pode ter consequências graves do ponto das liberdades e da organização mesma do Estado. Note-se que a preocupação com o eleitorado evangélico é essencialmente político-eleitoral, visto que os seus fiéis tendem a seguir as orientações dos seus pastores, algo que não ocorre, por exemplo, com os adeptos das religiões católica e protestante.

Entretanto, isso não significa que os fiéis sigam os seus pastores como pessoas sem rumo próprio. Se o fazem, é porque defendem valores determinados como a luta contra o aborto, a ideologia de gênero, sobretudo nas escolas, a união civil de pessoas do mesmo sexo, em defesa da ideia tradicional de família. Se um pastor se desviar desses valores, seus fiéis dele também se distanciarão. Eis, aliás, a imensa dificuldade do ex-presidente Lula em ingressar neste segmento, pois a sua política e a do seu partido não somente discordam desses valores, como sempre buscaram colocar seus próprios princípios de uma maneira impositiva. É como se uma maioria devesse simplesmente seguir uma minoria por ser esta politicamente correta. Produziram, com isso, a adesão maciça dos evangélicos a Bolsonaro.

Sobra ao candidato petista aquele setor evangélico mais desfavorecido socialmente, o que tem dificuldades com emprego, com o preço dos alimentos nos supermercados, com educação pública ruim e precárias condições de saúde. Aqui, são outros valores – os da sobrevivência – que terminam por ganhar proeminência. Inteligentemente, o atual presidente procura desviar a atenção destes desfavorecidos, dando-lhes um auxílio socioeleitoral e procurando atraí-los para uma encenação canhestra, a de que o demônio estaria à espreita.

À espreita de quê? Comer a alma de alguém? Lançar os desavisados numa sucessão intermitente de pecados, como se a danação estivesse a todos ameaçando? Onde fica o País neste cenário tumultuado de crise social, política e econômica? Sairá à caça de exorcistas?

Ocorre que nossos exorcistas contemporâneos ganham uma roupagem política, atribuindo a si mesmos uma missão. É como se Bolsonaro fosse não Jair, mas um Messias autóctone, tendo como destino a salvação do País. Os demônios não são, nessa perspectiva, alguns credos assim representados, mas o comunismo, o ateísmo e os petistas e grupos esquerdizantes em suas várias correntes. Tudo entra e se configura num quadro político religioso, em que o “mito” de 2018 se apresenta como o Messias de 2022.

Naquele então, poder-se-ia dizer que se tratava de um abuso de linguagem, uma piada de mau gosto, mas uma piada. Todavia, nestes quatro anos, embora de uma forma tosca e teologicamente não elaborada, o discurso do demônio tende a adquirir uma significação real. Não estaríamos diante de um processo eleitoral normal, próprio da democracia e do rodízio dos que ocupam o poder, sempre de uma forma temporária, mas de uma cruzada religiosa, uma encruzilhada que a todos deveria aterrorizar. O marciano, apavorado, resolveu voltar ao seu planeta. Não entendeu nada!

*Professor de filosofia na UFRGS.

O Estado de São Paulo