domingo, julho 31, 2022

A reconstrução do tecido democrático




Desafios a serem enfrentados é o que não falta

Por Oscar Vilhena Vieira* (foto)

Ao difamar o processo eleitoral brasileiro para uma audiência composta de embaixadores estrangeiros, num claro ato de deslealdade institucional, Bolsonaro desencadeou a formação de um inesperado e amplo arco de forças na defesa do Estado democrático de Direito.

Desta vez não foram apenas os setores tradicionalmente sensíveis e vigilantes aos sucessivos ataques aos direitos fundamentais e à democracia, como a imprensa, as organizações da sociedade civil, juristas, artistas e intelectuais que se levantaram.

A gravidade das investidas contra as urnas eletrônicas, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral despertou também entidades como a Fiesp, a Febraban, a Fecomercio, e mesmo entidades do Agro, como a Abiove, para a necessidade de assumirem uma postura mais clara sobre a defesa da democracia.

A presente conjuntura também abriu a oportunidade para um diálogo entre essas entidades empresariais, as centrais sindicais —que representam mais de 60 milhões de trabalhadores— como a CUT e a CGT, além das principais organizações da sociedade civil, na construção de um cinturão cívico voltado à proteção das instituições democráticas.

No plano internacional, o compromisso democrático assumido pelos ministros da Defesa do hemisfério soma-se à contundente manifestação de confiança no processo eleitoral, expressa pelo Departamento de Estado norte-americano, reduzindo o espaço de manobra de grupos radicais —e desleais à Constituição— no seio das classes armadas.

A estabilidade de um regime democrático, como se sabe, depende de múltiplos fatores, como a qualidade das instituições, o desenvolvimento econômico e o bem-estar da população. Também importam a conjuntura regional e a internacional. Há, no entanto, um elemento indispensável à sobrevivência das democracias, que é adesão dos principais atores políticos e institucionais, bem como dos setores mais relevantes da sociedade e da economia, às regras do jogo democrático, especialmente às regras que regulam o processo de alternância no poder.

A impressionante movimentação em torno da nova "Carta às Brasileiras e Brasileiros", já assinada por mais de 500 mil pessoas, assim como do "Manifesto em Defesa da Democracia e da Justiça", endossado pelas mais representativas entidades empresariais, sindicais e da sociedade civil brasileiras, aponta para uma auspiciosa recomposição do tecido democrático brasileiro, fortemente esgarçado pelo processo de polarização em que imergimos a partir de 2013, e que se aprofundou com a ascensão ao centro do poder de um ator hostil à democracia.

Ao reiterar o "compromisso inarredável com a soberania do povo brasileiro, expressa pelo voto e exercida em conformidade com a Constituição", as entidades que assinam o "Manifesto em Defesa da Democracia e da Justiça" deixam claro que o respeito ao Estado de Direito e o desenvolvimento são requisitos essenciais ao enfrentamento dos principais desafios colocados frente à sociedade brasileira. A construção de uma sociedade mais próspera e justa passa necessariamente pelo respeito incondicional aos "princípios republicanos expressos pela Constituição". Não há atalhos.

Se o primeiro objetivo na criação dessas frentes amplas, plurais e diversas é defender o Estado democrático de Direito da sanha autoritária de aventureiros e golpistas, talvez elas também possam representar um embrião na retomada do diálogo democrático e construtivo no Brasil. Desafios a serem enfrentados é o que não falta.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo