quarta-feira, junho 29, 2022

À falta de vida boa, a boa morte (cortesia do Estado)




Nos 90 anos do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley aconselharia ler a passagem sobre a eutanásia. Vale a pena contemplar o requintado horror – e imaginar a sórdida realidade em que pode traduzir-se.

Por Jaime Nogueira Pinto (foto)

A aprovação da Lei da Eutanásia, à socapa, nas vésperas de um fim-de-semana grande, é bem a imagem do país nesta Terceira República, com a sua anestesiada e anestesiante classe política e a sua acomodada e distractiva comunicação social, oscilante entre a histeria em prol das “boas causas” e a ocultação das más notícias – que passam orwellianamente a factos que nunca ocorreram, para evitar que promovam as “más causas” e atrasem a construção do mundo de tolerância e inclusão que nos aguarda algures para lá do arco-íris.

Objectividade mediática

A detenção pela polícia norte-americana de “um homem armado, com uma pistola, uma navalha e outras armas” (estou a citar do New York Times) foi um dos tais factos que “nunca ocorreram” – e que, por isso, não mereceu aqui qualquer destaque ou menção. E, no entanto, um homem, John Roske, de 26 anos, foi detido junto à casa do juiz Brett Kavanaugh, um dos juízes conservadores do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, tendo depois confessado à polícia que, chocado com a informação de que o Supremo poderia reverter a legislação sobre o aborto, quisera matar o Juiz e depois suicidar-se.

Em Março de 2020, o líder da bancada democrata no Senado, Chuck Schumer, senador por Nova Iorque, ameaçara num comício os juízes Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh pelas suas posições anti-aborto:“I want to tell you Gorsuch. I want to tell you Kavanaugh. You have released the whirlwind and you will pay the price.” Pelos vistos foi ouvido. Só nós é que não ouvimos nada.

É claro que nada disto importa porque nada disto aconteceu – nem as ameaças do Senador, nem o atentado ao Juiz –, daí o silêncio. Só teria acontecido, e aí sim com vasto e vistoso vendaval informativo, se um senador conservador (ou seja, “de extrema-direita”) tivesse ameaçado juízes democráticos (ou seja, “humanistas, isentos e razoáveis”) e um paranóico (ou seja, um “agente da direita radical”) se tivesse deslocado da Califórnia para a Costa Leste munido de um pequeno arsenal para executar o visado. Nada de novo e nada de especificamente nacional, a não ser no seguidismo, já que, neste como noutros aspectos, os media portugueses se limitaram a imitar as grandes cadeias televisivas norte-americanas – a ABC, NBC, CBS e a CNN – no silêncio que guardaram sobre o assunto. Silêncio que só a FOX quebrou.

Bons exemplos

Os nazis guiavam-se pela Ciência e cultivavam a higiene racial e social para que aVolksgemeinschaft, a comunidade popular, não sofresse nem fosse importunada por vidas incómodas, indignas, humilhantes e extremamente dispendiosas e trabalhosas. Era de melhorar a raça humana e de progresso social e científico que se tratava.

A ideia tinha sido já sido desenvolvida pelo inglês Francis Galton. Galton vinha de uma família de banqueiros, era primo de Darwin e frequentara o King’s College e Cambridge. Interessando-se pelo estudo da hereditariedade e inspirado pela teoria da selecção natural do primo Charles, pensara em formas científicas de melhorar ou de apurar a raça humana, no caso, a inglesa, evitando cruzamentos indesejáveis e promovendo os desejáveis.

Nas sociedades anglo-saxónicas da segunda metade do século XIX, princípios do século XX, a Eugenia – o modo de evitar a reprodução dos “inferiores” e estimular a reprodução dos “superiores” – encontrava grande aceitação. Até Winston Churchill a endossava. A detenção dos “mentally inadequate” e a esterilização dos “unfit”, para que não perpetuassem tendências doentias ou criminais, era considerada uma medida adequada para proteger a sociedade. Em 1908, nomeou-se uma Royal Commission on the Care and Control of the Feeble-Minded para tratar disso. Os “débeis mentais”, os “pobres de espírito”, os “deploráveis” podiam esperar alguma coisa do Reino dos Céus, mas muito pouco do Reino Unido e dos seus governantes. Nos Estados Unidos, as teorias de Galton também tinham despertado grande entusiasmo, com o Estado de Indiana, em 1907, a sancionar a esterilização dos “social misfits”. Em 1926, vinte e três Estados da União tinham aprovado leis de esterilização compulsiva dos “inaptos”. Mas, enfim, eram oligarquias civilizadas, com o seu paternalismo liberal e a sua divisão de poderes e o processo podia ser devidamente enquadrado e protegido por comissões e excepções.

Mas eis que as consciências se vão anestesiando e as ideias se vão disseminando e extremando e Hitler se entusiasma com a Eugenia. Além disso, em Weimar, com os problemas sociais a agudizarem-se a partir da crise de 29, já se começara a encorajar a esterilização dos socialmente inaptos.

Em 1929 constitui-se a Nationalsozialistischer Deutsche Ärztebund (a Liga dos Médicos Nacionais Socialistas) e em Abril de 1933, com três meses de Hitler no poder, os médicos judeus do sector público hospitalar eram proibidos de exercer a profissão. Em 14 de Julho de 1933 era aprovada uma lei que ordenava a esterilização compulsiva dos portadores de uma série de doenças hereditárias. Os Tribunais de Saúde examinavam os pacientes e decidiam. Esses tribunais tinham três juízes – dois médicos e um funcionário do partido, “especialista” em doenças hereditárias e em Eugenia. Nos seis anos que precederam a guerra, 300 mil criaturas foram assim esterilizadas.

Se a Eugenia tratava de estimular medicamente a “selecção natural” dos “bem-nascidos”, a Eutanásia tratava de identificar os candidatos a uma “boa-morte”: os que, não tendo sido bafejados à nascença com bons genes ou com vidas dignas e felizes, teriam o dever de morrer, para atenuar o sofrimento social e para pôr fim à própria miséria, impedindo que pesasse sobre os demais e se multiplicasse. Também nesta matéria o regime nacional-socialista andou depressa. Havia, como há sempre, uns especialistas e juristas de serviço para abençoar essas boas práticas. O livro Die Freigabe der Vernichtung Lebensunwerten Lebens (Aprovando a destruição da vida que não vale a pena ser vivida), do jurista Karl Binding e do psiquiatra Alfred Hoche, trouxe a base teórica e ética para que se instituísse, em boa consciência, o direito de matar ou de ajudar a morrer os portadores de “vidas sem valor”.

A argumentação era do mais puro darwinismo social: para bem de todos, a sociedade não podia nem devia sustentar os seus “desgraçados” – os velhos, os doentes, os aleijados, os pobres de todos os Evangelhos. Dar-lhes uma “boa-morte” era a melhor solução.

Não é minha intenção fazer aqui uma reductio ad Hitlerum dos partidários da Eutanásia. Admito sempre que os meus adversários ou inimigos políticos tenham as suas razões e valores, contrários ou diferentes dos meus mas que, na sua coerência e lógica, sejam admissíveis e certos para eles. Rejeito, quase epidermicamente, o maniqueísmo ideológico daqueles para quem os que não pensam da mesma forma não passam de miseráveis, indignos de respeito e de convivência democrática; mas parece-me útil e conveniente lembrar a génese, os caminhos e os reveses das ideias – ou pelo menos não os esquecer.

Pioneiros “civilizacionais”

Independentemente de questões de princípio, uma das coisas que devia ter suscitado alguma reflexão a uma classe política e mediática secularmente ansiosa por seguir “as nações civilizadas” seria o facto de apenas sete países – dos quais quatro europeus, a Suíça, a Holanda, a Bélgica e a Espanha – permitirem a Eutanásia. Não foi o caso. Ainda que não houvesse qualquer pressão social, tudo foi feito como que à pressão, em passo acelerado e com caracter de urgência. Porquê? Talvez porque, para os nossos novos condes de Abranhos e conselheiros Acácios, o acesso rápido à “civilização”, ao “progresso” e à “modernidade” já não passe tanto por tentar copiar as “nações civilizadas” mas por tentar ultrapassá-las, mediante a célere aplicação de uma agenda legislativa radical avançada capaz de conferir aos legisladores um “pioneirismo civilizacional” imediato. Um pioneirismo que não se compadece com auscultações, reflexões ou pareceres contrários de especialistas e peritos.

Assim, num país pobre e que este regime não enriqueceu, num país em que, em todas as classes sociais, os mais velhos, os mais doentes, os que mais sofrem, tendem a achar que o seu tempo já passou e que são um peso para as famílias e para a sociedade, abre-se uma possibilidade legislativa de morte a pedido. Dá-se essa liberdade aos cidadãos em sofrimento, abre-se-lhes essa escolha, propõe-se-lhes esse caminho. Para seu bem e para o bem de todos. E com a introdução de semelhante proposta, a resposta ao sofrimento pessoal, ao sofrimento intolerável, deixa de centrar-se na mobilização de recursos para a mitigação da dor, na oferta de cuidados médicos e de apoios sociais, no incentivo estatal, moral e financeiro ao esforço comunitário, solidário e familiar para tratar, acompanhar e valorizar a vida dos que mais sofrem.

Podem não se selecionar as vidas que já não valem a pena ser vividas, como outrora no Terceiro Reich, mas fica a sugestão – para que quem sofre, para que quem se sente um peso insuportável para si mesmo e para os outros, a equacione com toda a liberdade. E quem, livremente e em consciência, decidir aceitar a sugestão, pode então contar com o Estado; um Estado que pouco faz para lhe proporcionar uma vida boa e digna mas que lhe passa agora a oferecer uma boa morte, uma morte digna e rápida, uma morte moderna, higienicamente administrada em ambiente hospitalar.

No nosso Parlamento, dominado por “forças de esquerda” que se dizem “humanistas”, esta conquista da esquerda unida (com a honrosa excepção do PCP) foi anunciada e aplaudida como uma conquista civilizacional.

Nos 90 anos da publicação do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, aconselharia a leitura da passagem sobre a eutanásia. O admirável mundo novo de Huxley é mesmo admirável, virado para o hedonismo e para a felicidade; um mundo sem guerra, sem violência, sem crime, sem família; um mundo onde o sexo é livre e as crianças nascem em série industrial. No World State, para a felicidade ser perfeita, não há más notícias e o sofrimento não pode existir, por isso não devem ser permitidos os “infelizes” – os velhos, os doentes, os que já não são úteis à sociedade. A Eutanásia está garantida e oferece-se em belas e luxuosas clínicas, com música de fundo e écrans de televisão. Vale a pena ler para contemplar o requintado horror – e imaginar a sórdida realidade em que pode traduzir-se.

É, por isso, importante atentar na forma como votaram a lei da Eutanásia muitos dos que aqui também legislam sobre a vida, a morte, a família e os valores à volta delas – que, a par das questões das fronteiras, da unidade, da identidade e da soberania nacional, são os valores que hoje mais contam e dividem. Para muitos, foi como se de uma minudência económica ou fiscal ou de um “progresso civilizacional” corriqueiro, só embargado por retrógrados e reaccionários, se tratasse.

A favor, totalmente a favor, votaram o Bloco de Esquerda e a Iniciativa Liberal, confirmando o parecer de alguns de que, tirando a Economia (que depende mais do BCE, da Comissão de Bruxelas e da guerra da Ucrânia que dos partidos locais), partilham muitos dos valores e ideais disponíveis no hipermercado global. Contra, totalmente contra, votaram o Chega e o PCP que, curiosamente, aqui convergem na defesa da dignidade da vida e na recusa em abrir portas social e civilizacionalmente perigosas (para grande satisfação de alguns “centristas” que, vendo-se aqui longe dos “extremos”, se acharam justificados na normalização da sua radicalidade). A grande maioria do partido do poder, o PS, votou a favor, com sete honrosas excepções; a grande maioria do PSD votou contra, com meia dúzia de excepções.

Os eleitores que também se preocupam com o rumo das coisas no que é verdadeiramente importante, deverão, para o futuro, ter presente esta votação.

Observador (PT)