O Brasil destruiu sua rede de trens de passageiros. A culpa é de todos nós.
Por Dagomir Marquezi (foto)
Amanhã eu vou até Vitória, no Espírito Santo. Já comprei minha passagem no Expresso Platina. Vou sair às 21 horas da Estação Nova Luz, no centro de São Paulo. Oeste me pagou uma confortável cabine com cama dupla e banheiro privativo, onde poderei tomar um banho antes de dormir. Jantarei a bordo e depois tomarei um licor no carro panorâmico, de poltronas individuais e giratórias. As janelas são muito grandes e a lua está cheia.
Lá pelas 7 da manhã, vou acordar para tomar o elogiado café da manhã a bordo do Platina, versão vegetariana. Uma hora depois, desembarcarei na Estação Dom Pedro II, totalmente reformada. Ficou bem parecida com uma daquelas estações ferroviárias europeias que nos faziam babar de inveja. Lá mesmo, às 10h25, embarco na primeira classe do InterCidades da RailEste. E no fim de tarde desembarco feliz e descansado na Estação Pedro Nolasco.
Demorar umas 20 horas para fazer uma viagem que duraria duas de avião não parece ser uma decisão inteligente. Mas trem não é avião. A viagem em si é o prazer. O destino é apenas um detalhe.
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Tudo bem, acordei. Nós, brasileiros, não temos mais o direito de viajar de trem. Insumos são transportados pelos trilhos, que não transportam seres humanos. Estamos abaixo de minério de ferro e soja.
Já tivemos esse direito. Trens de passageiros já cruzaram o Brasil de norte a sul, de leste a oeste. Viajar num carro dormitório já foi um ritual experimentado por gerações de crianças. O ruído abafado das rodas nos trilhos, o balanço suave e constante que nos leva ao melhor dos sonos. Para a grande maioria dos brasileiros, essa é uma experiência que eles nem imaginam que exista. A não ser que tenham viajado de trem no exterior.
Ontem mesmo o jornal The Times anunciou uma nova linha de alta velocidade ligando Paris a Berlim até o fim do ano. A viagem vai durar sete horas. Em 2023, será a vez de lançar os trens noturnos entre as duas capitais, uma tendência que está se espalhando pelo continente. Por motivos ambientais, governos europeus estão cortando linhas aéreas de curta distância, como a que liga Viena a Salzburgo. E reforçando essas ligações com trens.
Aparentemente, ninguém está reclamando desse movimento. ”Notamos que as pessoas estão aceitando fazer viagens cada vez mais vez mais longas”, declarou Jean-Pierre Farandou, diretor da empresa francesa SNCF. “Existem pessoas que estão preparadas para ficar cinco, seis, sete horas num trem.” Os brasileiros passam horas em congestionamentos.
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Só o Estado de São Paulo chegou a ter 18 ferrovias. Algumas delas com nomes que viraram lendas — Mogiana, Noroeste, Sorocabana. Sem falar dos 1.536 quilômetros servidos pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro, com seu padrão europeu de excelência. Ferrovias ligavam as cidades do Sul, as do Nordeste e cruzavam o Centro-Oeste em direção à Bolívia. As pessoas viajavam do Rio a Belo Horizonte de trem. Acabou.
Em termos de ferrovias, fomos grandes durante a primeira metade do século 20. E então o governo Getúlio Vargas decidiu que era preciso dar preferência às rodovias. Juscelino Kubistchek acelerou esse processo, e os trens foram sumindo pouco a pouco do alcance dos passageiros. Em 1957, veio o golpe fatal: todas as 22 ferrovias brasileiras que disputavam os passageiros foram reunidas na camisa de força estatal da Rede Ferroviária Federal.
Em 1992, o governo Collor de Mello iniciou o processo de desestatização da rede ferroviária. Mas ela só teria início efetivo em 1995, já na administração Fernando Henrique Cardoso. Quatro anos depois, a RFFSA estava extinta. E, com ela, acabaram todos os serviços para passageiros. Por alguns anos, o Trem de Prata ainda manteve o romantismo sobre trilhos entre São Paulo e o Rio. Mas, em 1998, também saiu da linha.
Foi um crime contra o povo brasileiro. E não adianta acusar apenas um ou outro. No fundo, somos todos culpados. Formamos uma sociedade da qual roubaram os trens, mas não demos queixa. Com raras exceções, não fizemos nada a respeito. Não exigimos a volta dos trens. Fingimos que não aconteceu nada.
A última esperança foi dada durante os anos do governo petista. A ex-presidente Dilma Rousseff garantiu que os brasileiros teriam um trem de alta velocidade ligando Campinas, São Paulo, São José dos Campos e o Rio de Janeiro a tempo para a Copa do Mundo de 2014. Era mais um embuste da era Lula. Uma estatal, a Empresa de Planejamento e Logística, foi criada para tornar o trem-bala uma realidade. O trem não veio, mas a estatal continua lá, firme. A EPL engole recursos, mas não entrega nem um trenzinho a pilha a quem a sustenta.
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O governo Jair Bolsonaro está sendo ativo no desenvolvimento e na recuperação das ferrovias brasileiras. Seu maior trunfo foi um marco regulatório que facilita as coisas para quem quiser investir no setor.
No início do governo, o então ministro Tarcísio Gomes de Freitas chegou a mostrar entusiasmo pela ideia de ressuscitar o TAV (Trem de Alta Velocidade) ligando Campinas, São Paulo e Rio com financiamento chinês. Logo, ele não falou mais do assunto. Foi um breve momento de ilusão.
Estamos à beira de uma nova eleição em nível federal e estadual. Mas nenhum candidato apareceu até agora com a mais simples proposta de estimular o transporte ferroviário de passageiros.
Hoje, temos uma rede básica de trens urbanos nas grandes cidades e algumas minilinhas de trens turísticos mantidas por heróis da preservação e persistência. A Serra Verde Express, por exemplo, faz uma viagem de luxo entre Curitiba e o Porto de Paranaguá, passando por inacreditáveis obras de engenharia na Serra do Mar, construídas no final do século 19. Outras linhas, mais simples, fazem pequenos passeios, como os do vinho, do forró etc.
O que temos de mais promissor até agora é um serviço chamado Trem Intercidades, que está sendo tocado com incrível lentidão pelos sucessivos governos tucanos do Estado de São Paulo. O Intercidades é um projeto ambicioso (dentro de nossos modestos parâmetros) que pretende realizar uma rede básica em “X”, tendo a capital paulista como centro. Uma linha noroeste-sudeste ligaria Campinas a Santos. Outra, sudoeste-nordeste, faria a conexão entre Sorocaba e São José dos Campos.
Mais concretamente, a primeira parte do Intercidades aproveitaria a linha metropolitana que já existe entre São Paulo e Jundiaí e esticaria essa ligação até Campinas. Até os guard-rails da Rodovia dos Bandeirantes sabem que o grande espaço entre as duas vias previa a construção de uma ferrovia São Paulo–Campinas. Mas a ideia acabou esquecida.
O projeto do Intercidades enfrenta desde o início a conhecida infernal burocracia de editais, processos, interferências jurídicas, complicações administrativas, audiências, julgamentos, oitivas e tudo o que o aparelho estatal costuma usar para atrapalhar nossas vidas.
O atual governador paulista, Rodrigo Garcia, resolveu realizar convênios com os municípios envolvidos, ao custo de R$ 10,2 bilhões. A intenção, segundo ele, é colocar o Intercidades para rodar até 2027, transportando 60 mil passageiros por dia, com paradas em Louveira, Jundiaí, Valinhos e Vinhedo. Vamos ver se esse entusiasmo do governador Garcia dura até o fim do ano.
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No dia 12 de maio, foi lançado o Manifesto pelo Avanço das Ferrovias de Passageiros no Brasil. “O Brasil é um país populoso e de dimensões continentais que precisa de uma infraestrutura adequada de transporte”, começa o manifesto. “E o Governo Brasileiro conta com uma oportunidade única para alavancar esse desenvolvimento através da publicação da Política Nacional do Transporte Ferroviário de Passageiros — PNTFP, que está sendo desenvolvida pelo Ministério da Infraestrutura.”
Logotipo da Estrada de Ferro Sorocabana
O manifesto reclama da “inexistência de um marco regulatório específico para o transporte regional de passageiros. A Política Nacional abre um importante caminho para o desenvolvimento de uma indústria forte, de uma nova cadeia produtiva e profissional, gerando ainda mais emprego e renda para a população e para o País”. É assinado por entidades como a Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos, o Instituto do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade e empresas do setor, como a Alstom, a Deutsche Bahn International e a Marcopolo Rail.
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É uma vergonha que o Brasil esteja nessa situação. Aliás, como o restante da América Latina. (Só o Peru tem um serviço de classe para as ruínas incas de Machu Picchu). Os Estados Unidos também se atrasaram com a lentidão da estatal Amtrak. Mas o país está coberto pela rede, ainda que ultrapassada. E projetos privados de trens de alta velocidade estão sendo implantados nos Estados da Flórida e da Califórnia, além do serviço Acela, que liga Boston a Nova Iorque e Washington, o famoso “Corredor Nordeste”.
Bilhete do Expresso Asa Branca
Enquanto isso, a Europa e a Ásia dão um show de tecnologia e serviços. Japão, China, Coreia do Sul e Taiwan hoje estão na vanguarda do setor. Os europeus também apostaram na alta velocidade, especialmente na Espanha, na França, na Itália e na Alemanha. E a onda, empurrada pelas novas exigências de energia limpa, está se espalhando por lugares surpreendentes. Os países árabes do Golfo, a Arábia Saudita e o Marrocos, por exemplo, estão investindo pesadamente em trens de passageiros. A Índia tem uma das maiores redes do mundo, a Rússia lançou seus Sapsen, a Austrália e a Nova Zelândia mantêm a tradição do Império Britânico. O trem mais luxuoso do mundo (o Blue Train) opera na África do Sul.
Temos um território amplo, relativamente plano, uma necessidade urgente de deixar de depender de carro particular. Mas nós não conseguimos sair do lugar.
Esse panorama triste e desanimador tem duas exceções. Mas este é assunto para a próxima coluna.
Revista Oeste