quarta-feira, fevereiro 02, 2022

Zelenski, o presidente na posição mais difícil do mundo.




O ex-comediante não apenas tem Putin cercando seu país por três lados, como se estranha com Joe Biden, de quem a Ucrânia depende para sobreviver. 

Por Vilma Gryzinski

Como ex-humorista que interpreta um professor de história eleito presidente por acaso, Volodimir Zelenski (foto), o presidente da Ucrânia que reproduziu na vida real o enredo de ficção, provavelmente consegue ver o lado irônico de sua posição atual.

Isso se tiver tempo livre para esse tipo de conjectura. Não existe chefe de governo em posição mais complicada do que ele no mundo atual.

A principal complicação todo mundo conhece: é Vladimir Putin, que cercou a Ucrânia com 130 mil homens e se delicia em fazer o poderoso enquanto Europa e Estados Unidos, que não perderiam um soldado pela Ucrânia, tentam impedir uma invasão na base da ameaça de sanções.

É viável uma invasão? Putin gosta de correr riscos, mas teria pouco a ganhar com uma invasão clássica que contrariaria todos os mais basilares princípios da convivência mundial. Não há nenhum interesse existencial da Rússia envolvido na Ucrânia, fora o ressentimento de uma ex-superpotência por ter “perdido” um país da sua plena esfera de influência e o projeto de longo prazo de Putin para refazê-la.

Contestar a hipótese de invasão também faz parte da tática de Zelenski – o que já o levou a ter um atrito nada disfarçado com Joe Biden.

Como parte muito mais fraca do que o vizinho gigante, a Ucrânia tem a sobrevivência atrelada ao ânimo dos Estados Unidos para pressionar a Rússia.

Zelenski faz o que pode: diz que “gritar lobo” sem parar – ou seja, propalar a iminência de uma invasão russa – desestabiliza o país economicamente. Em sigilo, fontes ucranianas plantaram que, por causa disso, a última conversa com Biden, por telefone, “não foi boa”. Os americanos desmentiram furiosamente. Informantes anônimos estão “vazando falsidades”, disseram.

As previsões do governo americano, em on e em off, são de que Putin só está esperando o solo ficar bem congelado para descer os tanques. Isso aconteceria agora, em fevereiro. Depois da janela de oportunidade, a “rasputitsa” atrapalharia tudo. A palavra em russo é tão feia quanto a situação que descreve: estradas intransitáveis pela lama que o descongelamento, trazido pelo início da primavera, provoca.

Não é a primeira vez que Zelenski fica numa posição extremamente precária com um presidente americano.

Em 2019, ele foi arrastado para o centro da discórdia que acabou provocando o primeiro impeachment de Trump (enterrado no Senado, onde os republicanos tinham maioria). No cerne da questão estava um telefonema em que Trump pedia “um favor”: investigações sobre as atividades de Joe Biden e seu filho, Hunter, este seduzido pelo pantanal ucraniano de corrupção ao ser contratado pela maior empresa ucraniana de extração de gás para não fazer nada, exceto exibir o sobrenome famoso, quando o pai era vice-presidente.

Trump queria informações para constranger seu futuro rival. O caso acabou virando um escândalo de proporções infladas pelo antitrumpismo. Desconfortavelmente no meio dele, ficou Zelenski, que fez uma visita previamente marcada aos Estados Unidos durante a qual parecia um cordeiro sacrificial oferecido à sanha da imprensa.

Posições desconfortáveis não são novidade na vida de Zelenski, um presidente de apenas 44 anos, judeu num país com sombrio passado de antissemitismo, visto com desconfiança por outros judeus por ter se casado com uma cristã e – dizem – batizado o filho na religião ortodoxa.

Eleito com 73% dos votos, um sinal poderoso de que os ucranianos procuravam uma alternativa fora da disfuncional política tradicional, ele chegou ao fim de 2021 com apenas 28% de aprovação.

Como enfrentar o nível quase indescritível de tensão provocado pelo cerco russo? E ainda por cima se indispor com Joe Biden, dando aos críticos da direita anti-intervencionista (e pró-putinista) argumentos para dizer que “nem o presidente da Ucrânia acha que haverá invasão”?

Zelenski apoiou um projeto de lei apresentado pelo senador Ted Cruz, propondo que o gasoduto Nord Stream 2, que levará gás russo para a Alemanha, fosse bloqueado, numa espécie de sanção preventiva. O projeto não teve os 60 votos necessários. Os democratas, com quatro exceções, votaram contra, refletindo a posição do governo Biden, que tem que lidar com uma Alemanha, como certos partidos políticos brasileiros, louca para trair.

Os Estados Unidos tentam mostrar uma frente unida na promessa de sanções arrasadoras no caso de uma invasão russa, mas Putin sabe ler muito bem o que existe por trás da retórica estridente, um certo fatalismo sobre a Ucrânia e seu destino subalterno ao do grande vizinho.

“Putin não é jovem e deveria pensar no legado que deixará”, disse Zelenski em entrevista ao Washington Post, apelando ao argumento dos desesperados e a uma inexistente boa vontade por parte de Putin.

É definitivamente mais fácil ser presidente na ficção, deve constatar Volodimir Zelenski todos os dias.

Revista Veja